quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Biografia em fragmentos II ou Que saudades do mimeógrafo!


De vez em quando olho para os meus alunos e penso: qual deles mais se parece comigo quando tinha essa idade? Difícil imaginar, todos parecem espertos demais, astutos demais. E não sei até que ponto isso é bom ou ruim. Ora invejo essas crianças que parecem atualmente chegar prontas no mundo, ora lastimo a geração que não brinca mais de mamãe-da-rua, garrafão e “cai no poço”. O fato é que não me reconheço em nenhum dos meus alunos, perto deles eu era um estranho “nerd”, se é que ainda se usa essa palavra... gíria caduca!
Lembro de quando estava na terceira série e vi um colega (repetente e por isso maior e mais velho) portando uma carteira de cigarros. Não sei até hoje se ela fumava mesmo ou se queria apenas impressionar os menores e medrosos como eu. O que sei é que sentia que só por dividir a mesma sala com ele eu já era um fumante. Um fumante, um criminoso com oito anos de idade. Roguei a minha mãe que me livrasse do maldito vício de conviver com um fumante; carga pesada demais para mim.
No mesmo ano, o aluno mais aplicado da turma teria sua primeira decepção. Com a disciplina de um samurai, orgulhava-me dos meus SS’s, dos vistos carimbados da professora acrescidos da inscrição com letra de normalista – “parabéns!”. Numa fatídica manhã, quando a professora devolvia as provas de matemática, pude sentir o peso de 300 quilos do MI (média inferior) que desabava sobre a minha cabeça. O mundo começava a ficar em slow motion, quase que paralisado pela vergonha da nota vermelha. Naquela hora, fiz o que qualquer homem de oito anos faria: chorei copiosamente, desbragadamente ao pensar na mancha vermelha que marcaria para todo o sempre a minha vida, e o mais grave: o meu histórico escolar. Ao ver o meu desespero, a professora chamou-me para tomar a tabuada, a que de pronto respondia, tentando ignorar os soluços convulsos que me dificultavam a fala. Certa de que eu sabia do conteúdo, a tia-professora modificou a nota, fazendo o vergonhoso MI transmutar-se em um medíocre MM, o que nem de longe me contentou. Continuei chorando. O MM de piedade não foi suficiente para apagar a vergonha por que passara. Hoje penso na falta de sensibilidade da professora que não enxergou o erro de percurso, que deu mais importância a uma menção do que ao menino do SS-parabéns-plus! Nunca mais consegui fazer uma prova de matemática tranqüilo. O medo do fracasso surgia aliado à imagem da professora questionando: três vezes três; seis vezes oito; sete vezes cinco; igual a frio na espinha, amnésia momentânea e uma notinha mediana para não cair no choro outra vez, denunciando os oito anos que não saem mais.
Embora morasse pertinho da escola, saía de casa com pelo menos 45 minutos de antecedência. Não porque tinha medo de chegar atrasado, o que era quase impossível, mas somente para ser o primeiro da fila e pegar na mão da professora na hora de ir para a sala de aula. Pegar na mão da professora era uma honra; poder ajudá-la a carregar o seu material então era a glória. E, parafraseando Leminski, eu carregava aquelas pastas, cadernos, caixinhas, “como se portasse medalhas, uma coroa, um milhão de dólares ou coisa que os valha”. Era o rei da classe. O rei da tia-professora.
Meu maior sonho era um dia ajudá-la a “rodar” o material da aula. Rodar o material era fazer uma espécie de impressão manual utilizando o arcaico mimeógrafo – uma máquina pesadíssima movida a litros e litros de álcool que imprimiam no branco do papel em contornos lilázes, arroxeados, os desenhos que com felicidade coloríamos e dávamos vida. Alguns coloriam desordenadamente, como rabiscos ferozes e cores inesperadas, como o meu irmão que insistia em pintar o pato de azul; outros, mais cuidadosos e nem por isso mais saudáveis, já arraigados a pequenas estruturas, perseguiam com fôlego a verossimilhança e dava ao pato cor de pato, à árvore cor de árvore. A diferença entre um e outro é que aqueles – dos patos azuis, tornaram-se adultos mais livres, estão mais à vontade na vida, sabem que a vida se colore com o lápis que se tem, compreendem bem a filosofia do limão (“se a vida te der limões, então faça uma limonada!”). Isso mesmo, ao vencedor, os limões! Os demais estão presos a um perfeccionismo, aos padrões impostos e pagam em dobro os impostos padronizados. Estes percorrem toda parte procurando a cor mais adequada, mais verossímil, a aquarela perfeita, e não se dão conta de que a corrida cega pelo caminho dito certo acaba transformando a vida num retrato em preto e branco. (Estou pensando em me lançar no mercado da auto-ajuda, menos por acreditar no meu talento na área e mais por sonhar com as cifras e com um castelo só para mim!).
O fato é que um dia, a memorável professora deu-me o prêmio de rodar o material da aula. Entre orgulhoso e tímido, girava a manivela vendo saírem como num passe de mágica os desenhos que pintaríamos dali para frente. Sentia-me professor, irmanava-me a ela no ofício de transformar papel branco em lição, em tarefa, em letras, números, textos, em vida. Era a vida que eu via acontecer naquela hora. Um fragmento de vida na atividade prosaica de uma professora e de seu aluno que descobria como as coisas aconteciam por trás das câmeras, como se planejavam os pequenos exercícios que nos faziam compreender outras coisas, também da vida – umas mais, outras bem menos importantes. Inebriado pelo álcool, rodei o material. Naquele dia, senti-me co-autor, via um pedaço de mim nos trabalhinhos que meus colegas manejavam. E eu não pintava mais, reinava acreditando que já era professor. Sem que eu soubesse, ensaiava os passos de um futuro conflitante.

4 comentários:

  1. Quisera eu ter tido a ousadia de pintar meus patos de azul. Hoje continuo a procurar as cores mais adequadas para cada desenho, ainda disfarçando, fingindo não saber que possuo poucos lápis na mão e que deveria fazer deles possibilidades amplas. Mas como somos limitados!
    Tendo nascido num ambiente que muito cedo me moldou, na escola segui à risca cada lição e idolatrando as professoras e depois professores, resolvi seguir este caminho. Assim como você, respiro os conflitos da opção/vocação/alucinação/paixão que é lecionar.
    Perfeito texto. Obrigada por oportunizar-me a mim e a outros esta leitura.
    Beijo.

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  2. Imagine agora essa tua professora lendo o teu texto? Imagine a alegria e o orgulho que tomariam conta dela?

    Eu acho que é esse o motivo para que tantos se apaixonem por algo tão bonito =)

    E obrigada por te tornares professor, teus alunos agradecem meu caro!

    Beijo
    :*

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  3. Amigo Rafael! não tinha lido ainda...adorei... me fez rir, me fez lembrar da minha época de 8 anos em que temia as notas vermelhas e "MIs". Tb tirei alguns em matemática, também já chorei na sala, já fiquei com o rosto ardendo de vergonha querendo esconder a prova... adorava o cheirinho de álcool que ficava no papel... rs Inté!

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  4. Professor Rafael, sei que não é a profissão que escolhi para mim, porém me vi no teu lugar na hora de girar a máquina que copiava em versões roxas os nossos papéis e tarefas de aula. Quase sempre saíam boradas, porém, são mil vezes mais 'felizes' que aqueles escritos: Colégio JK - Aluno - Data - Professor e Turma em que os papéis são todos iguais, e só muda o conteúdo e o numero de páginas. Adorei a originalidade do teu blog. Parabéns!
    Beijos :*
    Ana Carolina 2ºE

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