quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O elefante c'est moi



Busco quem compreenda meus fragmentos
Os pedaços de mim espalhados pelo vento
Como bolhas de sabão em meio a um vendaval
Porque sou fragmento
E vivo tentando costurar os pedaços de vida
E saio mambembe com as linhas penduradas
Denunciando o coser amador

Cansei de tentar ser completo
E hoje duvido da integridade
Por isso busco quem me queira aos pedaços
Recolhendo-me e montando o que pode ser montado
O que não foi perdido
Ou, por querer, esquecido.

A canção "particular" de Maria Gadú


Tive a sorte de conhecer a música de Maria Gadú, artista bem jovem, mas com um talento antigo, tenho certeza. Trata-se daqueles poucos álbuns que se tem vontade conhecer inteiro numa só tarde, porque se tem certeza de que embalará outras tantas. É isso: o disco de Maria Gadú me lembra uma tarde de chuva, daquelas descomprometidas em que se fica debaixo de um bom cobertor admirando a beleza do tempo frio e do calor aconchegante de um agasalho.
Duas canções, em especial, me encantaram. A primeira - “Dona Cila”, é uma canção escrita em homenagem à sua avó, a quem o álbum é dedicado. A letra é permeada por um sentimento a um só tempo doce e amargo. A doçura do amor que sustenta, o amargo da despedida. Há melancolia na construção e melancolia é um sentimento difícil. Fala de uma dor danada, a do apego que “não quer ir embora” junto com quem se vai. E termina belamente com uma espécie de oração:

Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um banto a ela, que ela me benze aonde eu for

A outra é um samba-canção a não dever quase nada a outros grandes nomes do samba brasileiro. Falo de “Altar particular”, canção de uma cadência a la Noel Rosa e também de letra sofrivelmente bela. Com versos como “No breu de hoje eu sinto que/ O tempo da cura tornou a tristeza normal”, o eu-lírico, que experimenta a via crucis de uma dolorosa relação amorosa, espera, no sentido mais perseverante da palavra, a concretude do amor, uma fagulha de plenitude alcançada pelo coração. Finaliza, entretanto, com a espera:

Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor

Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou contudo a flutuar no rio
esperando a resposta ao que chamo de amor

O disco que traz ainda regravações como “A História de Lily Braun” de Chico Buarque e o clássico “Ne me quite pas” (em versão surpreendente), agrada pela beleza e pelo cuidado. Se “música é perfume”, o disco de Maria Gadú há de espalhar aromas inesquecíveis e, com sorte, hão de impregnar...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Coisas de mãe I

Na mão direita aberta cinco moedas. Insuficiente para o refrigerante. Sem problemas: comeria somente o cachorro-quente. A manhã pesada da aula lhe deu muita fome. Ainda teria toda a tarde pela frente. Sabia que estudar era o caminho, sua mãe sempre lhe dizia.
Do outro lado da cidade, a mãe recolhida na copa, terminava de esquentar a sua marmita. Lembrou-se por um instante do filho na faculdade que talvez não tivesse dinheiro para comer. Deu a primeira colherada. Em sua cabeça, o filho com fome. Mastigava com dificuldade. O filho do outro lado da cidade com fome.
A comida começou a inchar em sua boca, não descia pela garganta. Sentiu dor e tristeza profunda, cuspiu e pôs-se a chorar orando pelo filho.

"A solidão de ser só dois"



Os corpos nus espalhados na cama.
Não tinham sequer recobrado as forças após o intenso gozo que ainda enchia seus corpos de uma avalanche de choques e espasmos.
De repente, ele se virou de lado, alcançou os cigarros e o isqueiro em cima de um criado mudo e acendeu.
A fumaça criou uma espécie de cortina entre os dois, quando ele começou a falar:
“Já pensou que loucura: se eu morresse agora eu nunca mais sentiria prazer. Não é mesmo louco!?”
A cortina se adensou. A fumaça branca agora mais espessa parecia paralisada no ar entre os dois.
“Se você morresse agora, disse ela, eu nunca mais sentiria prazer.”
A frase saiu desconcertada, entre titubeante e emocionada por ter proferido o que poderia ser interpretado como uma declaração de amor. E talvez o fosse. Era.
Nunca antes fora capaz de dizer isso a ninguém, tanto por incerteza quanto pela falta de oportunidades. Colecionou quatro ou cinco romances malfadados cujas declarações nem...
Disse e desviou o olhar. Queria parecer indiferente, distante, soou envergonhado, tímido, real.
Ele se levantou calmamente, pôs no aparelho um disco de Noel:
“Você precisa pensar um pouco mais em si mesma”.
“Eu não te entendo.”
“Talvez nunca entenda mesmo, mas que importa? você precisa é se entender!”
Disse isso enquanto se vestia.
Nessa hora, ela se virou de lado, cobriu-se com o lençol amarrotado e pela primeira vez envergonhou-se de estar nua.