domingo, 15 de maio de 2011

A última borboleta


A última borboleta voou
Saiu girando em espirais
Sinuosa num vôo leve e seguro
Vôo de quem sabe o alcance das asas,
De quem tem a destreza da liberdade
De quem sente o cheiro-norte da flor

Hordas de miseráveis a seguiam
Buscando caminhos
Crendo num destino seguro
Iam cegos, guiados pela borboleta solitária
Que ignorava o choro e o ranger dos dentes
Que só pensava em voar, em girar
Como rodas gigantes e moinhos

Hordas de miseráveis em fúria
Abandonando o mundo vazio
De flores-garrafas-pneus
E sementes de podridão
Que se multiplicam
Em terrenos baldios.

Outrora a borboleta pairava
Sobre as águas borbulhantes do aterro
Tornava a tragédia bela
Estetizava o feio numa perversa ternura
Entre fome, tristeza e crua esperança.

Pousada na lata amassada
Compôs um belo quadro do lixo
Cores vivas contrastando como cinza
Que cheirava a morte e destruição
Levantou vôo e foi buscar novas cores
Novos ares, aromas, amores
Seguida pela multidão cega e triste
Que sonha com um mundo
Colorido de borboletas...

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A Máquina I


A máquina I
A leitura do romance de Adriana Falcão recomendada aos meus alunos motivou-me a começar uma série de postagens com algumas reflexões que podem ajudar a esclarecer, a levantar questionamentos, a suscitar embates intelectuais, emocionais, de ordens diversas. Espero que as postagens sirvam para enriquecer o debate.

A obra de Adriana Falcão, de 1999, interessa-me especialmente por dois pontos. O primeiro deles recai sobre um dilema estruturante das narrativas latino-americanas – a dialética do atraso e do progresso, do arcaico e do moderno, do local e do universal, que, a meu ver, no romance é claramente ilustrado. O segundo ponto trata do que Guy Debord chamou “sociedade do espetáculo”, inevitavelmente ligado aos conceitos de mercadoria e fetichismo.

Dessa forma, os textos que se seguirão estarão versando sobre esses pontos, na esperança de que faça da leitura dA máquina um espaço de diálogo, reflexão e atitude diante da vida.
Abraço e felicidades!

A migração às avessas

Visto superficialmente A Máquina pode parecer, à primeira vista, uma divertida e inocente fábula sobre o amor e o tempo. No entanto, se nos permitirmos uma visada mais demorada e mais analítica, notaremos questões mais profundas e problemáticas merecedoras de um justo debate.

O romance trata da aventura de Antônio no intento de ir buscar o mundo para dar de presente para Karina, por quem é apaixonado. Esse mote é narrado a partir de uma voz aparentemente distanciada que fala do que um tempo “longe que só a gota”, no qual os personagens vivem suas peripécias.

Antônio possui uma relação bastante peculiar com o tempo. Uma proximidade que, inclusive, serve como estratégia para a realização da missão a que se propõe. Essa intimidade de Antônio com o tempo gera a coexistência de temporalidades – presente, passado e futuro – fato que adquire um valor simbólico peculiar sob nossa ótica. Em estudo de 1973, intitulado Literatura e subdesenvolvimento, Antonio Candido, um crítico literário de grande importância em nossas letras, afirma que a coexistência do atraso e do progresso são marcas da história latino-americana. Trata-se de um atraso causado pela condição extrema de dependência econômica, política, mas também literária, cultural. Dessa maneira, a eficácia estética dos textos deixa entrever as marcas dessa dialética no trabalho operado pelos autores, enredados inevitavelmente numa dinâmica histórica que passa a ser internalizada na obra, tornando-se igualmente interna, constitutiva da fatura do texto. Ou seja, no trabalho artístico pode-se perceber questões que influenciam diretamente no nosso modo de viver e de perceber o real.

Assim, quando o romance de Adriana Falcão traz a simultaneidade de planos temporais, parece-nos uma dica de que também entre nós, na materialidade de nossas experiências sociais, também parece haver a coexistência de tempos, de realidades históricas, que apontam fundamentalmente para a nossa complexa história formativa. Basta lembrar que o Brasil surge num contexto de expansão de uma lógica que dá curso ao que hoje chamamos capitalismo, mas para isso precisa se valer de práticas arcaicas como o latifúndio e a escravidão. Isso quer dizer que para o mundo avançasse era necessário que outros mundos amargassem o atraso, a exploração. Essa é a nossa história.

E você deve estar se perguntando o que é que tudo isso tem a ver com A Máquina? Ou será que a Adriana Falcão estava pensando nessas coisas na hora de escrever seu livro? Vejamos nos próximos debates...
Abraço, companheiros!

Reflexões sobre Educação



Tenho afirmado, sem medo das conseqüências, que a educação pública brasileira passa por uma verdadeira crise. Pessimismo à parte, considero que um momento de crise é sempre importante para a evolução. É, como a etimologia já indica, momento de decisão, de mudança. As atrocidades que vemos e ouvimos diariamente são o grito desesperado de uma instituição carente de profundas transformações, de alterações significativas no sentido de fazer com que ela volte a ter significado. Sim, porque o que se nota é que a escola precisa ser ressignificada, precisa repensar o seu papel num mundo cujos valores destoam dos modelos nos quais a maioria de nós fomos formados.
Os professores há muito não representam autoridade. Pelo contrário, parecem cambaleantes nesse entrelugar, misto de psicólogo, de conselheiro tutelar, de policial, de pai e mãe, quando estes faltam em suas vidas. Os discursos professorais que, quando o puro vigor pedagógico falhava, se utilizavam das provas e recuperações como instrumentos de barganha, de negociata, agora soam frágeis diante de uma educação facilitadora que se esforça apenas em comprovar com índices e tabelas a redução das retenções nas escolas de todo o país. Estatísticas que escamoteiam a real condição de um sujeito que vê diante de si uma função de 2º grau sem sequer reconhecer as operações essenciais, impossibilitado de redigir um texto simples contando sua história de privação e exclusão. E essa história precisa ser contada...
Falo de realidades de sala de aula que tenho acompanhado onde os professores se sentem frustrados por não conseguirem, apesar de tanto empenho, um espaço de diálogo, um momento de atenção, um lampejo de curiosidade. Não aquela curiosidade que nos deixa meio desconsertados e nos força a estudar mais para surpreendê-los, mas perguntas, ainda que primárias, que demonstrem o mínimo de vitalidade. Vitalidade que lhes foi roubada por uma escola, produto de uma história de exclusão e privilégios, que mortifica dia a dia os sujeitos amontoados e distribuídos entre projetos que, como promoções-imperdíveis-tipo-casas-bahia, prometem aceleração, progressão e sucesso e só promovem atraso, deficiências e obstáculos. É quase impossível que alunos que, magicamente, pulam da 5º série para o Ensino Médio acompanhem o processo e logrem êxito, posto que as habilidades e competências necessárias para aquele momento da vida foram rabiscados de sua lista, agora transformada numa interminável relação de preconceitos e discriminações a serem enfrentadas.
Faço também deste texto um espaço de homenagem às professoras e professores que se embrenham na estrada sinuosa da sala de aula, que reinventam a cada dia o seu jeito de ensinar e aprendem com esses abalos. Homenageio não por simples elogio ao mérito, mas porque diariamente eles demonstram o que é coragem, esperança e dão pistas de como mudar a realidade.
O fato é que há uma série de questões a serem enfrentadas: o aluno desinteressado, numa escola desinteressante, com professores desmotivados, é levado ao fracasso; os alunos pouco interessados numa escola que pouco lhes proporciona como espaço de crescimento é, muitas vezes, arrastado pela mediocridade reinante de uma lógica minimalista; o aluno empenhado, com desejo de crescer e de enfrentar sua exclusão, em detrimento da escola e dos professores que possui é um milagre. E, embora eu acredite em milagres, prefiro a vivência da religiosidade que diz “o Reino é aqui; é o agora”, que entende que a luta é parte necessária do processo. É enfrentando a realidade que damos o primeiro passo na direção da mudança. De minha parte, estou lutando o bom combate e me empenho em fazer chegar o mais longe que puder as vozes silenciadas pela lógica da exclusão, da marginalização, do desdém do poder público, pois como questiona Drummond, “posso sem armas revoltar-me?”. Sim, podemos!