quinta-feira, 12 de março de 2009

"A arte ensina à vida o seu dever..."

Fico impressionado e cada vez mais convencido do poder da arte de nos fazer enxergar a realidade de uma maneira diferenciada (mais alta. Mais certa?). Por meio dela percebemos que a inventividade, a imaginação não se configura como mentira, mas como um universo alternativo, justamente para nos forçar a ver o que nos era negado – pelo outro e por nós mesmos. Nas palavras de Pessoa: “eu simplesmente sinto com a imaginação”...

Num primoroso conto de Monteiro Lobato (“Duas cavalgaduras”), um leitor fictício numa certa altura da narrativa pergunta ao narrador: “Mas isto, afinal de contas, é vida ou romance?”. Ao que ele responde: “Grande tolo... É a vida com a lição da arte. A arte corrige a vida, dizendo-lhe: se não és assim, fera, devias sê-lo; se não procedeste assim, harpia, devias ter procedido (...) A arte ensina à vida o seu dever.

Penso isso pela dificuldade em que me vejo muitas vezes ao discutir tal assunto com alunos – esse potencial de suspensão de uma realidade material, palpável, mas que mantém a todo momento comprometimento com ela, ainda que fale das coisas mais absurdas. Desse modo, o mundo coberto de preás de Baleia, os gigantes-moinhos de Dom Quixote, os baobás e as rosas do pequeno Príncipe nos apontam a supremacia de sonhar a vida. Na leitura experimentamos um eixo interminável de possibilidades de existir, seja na identificação com as personagens, seja na intromissão ao julgar as traição e transações de outras vidas que não a nossa, de outras dores que não as nossas. E prosseguimos lendo e alimentando essa máquina preguiçosa que é o texto (como afirma Umberto Eco), dando forma às diversas encadernações em que podemos existir.

terça-feira, 10 de março de 2009

Das reflexões sobre o Jazz


Da janela podia ver o espaço ainda verde com três grandes árvores, uma grama imensa e molhada pelo sereno que sucedia a chuva caudalosa de horas atrás. Senti pena ao saber que ali construiriam um novo prédio. Barulhos, cimento, buracos... sufocariam a única possibilidade de vida que me restava para ver. Surpreendi-me com a sensibilidade que me acometia. Busquei a minha própria vida, ou o que restava dela como alento. Vida de plástico, puro polímero degradado pela fumaça do cigarro que subia branca e lenta, enquanto Ella cantava e se espalhava na sala quase escura. A vida era a falta. Faltava-me o vinho, faltava-me o whisky, nada mais que duas cervejas velhas na geladeira eram o que eu tinha para fingir a secura doce do vinho e a embriaguez do whisky. Serviriam no momento. O que eu mais sabia era fingir, por isso a falta. Lembrei-me de Caio Fernando Abreu: “existe sempre uma coisa ausente que me atormenta”.

Ella cantava e ela sumira deixando apenas os discos que eu aprendera a ouvir e pelos quais eu podia ouvi-la. Foi-se deixando espaços livres no meu dia. Agora eu me dedicava a olhar o espaço-tempo pela janela do apartamento, contemplando a ausência iminente da verde grama e das três árvores companheiras, maldizendo a planta de plástico inerte perto da janela, sempre a denunciar a minha vida descartável, sofrendo o jazz rasgado que doía, morrendo aos cigarros que ardiam na garganta. Senti-me triste ao olhar as árvores, inconscientes de sua morte tão próxima. E num momento pensei que na verdade eu é que era digno de piedade. As árvores podem viver a sua totalidade justamente por não terem consciência do seu fim. [Elas simplesmente são.] Eu, do contrário, estava condenado a experimentar a certeza do fim. E qualquer dor já era o fim. Via-me pequeno e sentia a morte gota a gota – a morte da ausência, a morte da solidão jazzeada, a morte do pensamento que só quer morrer.

Desde então aprendo muito com aquelas árvores. Acompanhar o seu dia-a-dia têm sido todos os meus dias. Olho-as como quem quer partilhar os últimos dias de um doente em fase terminal. Sei que é, na verdade, para disfarçar o meu próprio fim. Definho como um Narciso diante do espelho verde. E sempre que posso (ou quando sinto insuportável saudade do amor?) desço após as chuvas para molhar-me na umidade dos seus galhos e da relva que se estende como uma extensão dos troncos altos e firmes. E de lá ainda posso ouvir Ella cantando, o queimar do cigarro no parapeito, e o mais doloroso, aqueles passos se distanciando.