terça-feira, 10 de março de 2009

Das reflexões sobre o Jazz


Da janela podia ver o espaço ainda verde com três grandes árvores, uma grama imensa e molhada pelo sereno que sucedia a chuva caudalosa de horas atrás. Senti pena ao saber que ali construiriam um novo prédio. Barulhos, cimento, buracos... sufocariam a única possibilidade de vida que me restava para ver. Surpreendi-me com a sensibilidade que me acometia. Busquei a minha própria vida, ou o que restava dela como alento. Vida de plástico, puro polímero degradado pela fumaça do cigarro que subia branca e lenta, enquanto Ella cantava e se espalhava na sala quase escura. A vida era a falta. Faltava-me o vinho, faltava-me o whisky, nada mais que duas cervejas velhas na geladeira eram o que eu tinha para fingir a secura doce do vinho e a embriaguez do whisky. Serviriam no momento. O que eu mais sabia era fingir, por isso a falta. Lembrei-me de Caio Fernando Abreu: “existe sempre uma coisa ausente que me atormenta”.

Ella cantava e ela sumira deixando apenas os discos que eu aprendera a ouvir e pelos quais eu podia ouvi-la. Foi-se deixando espaços livres no meu dia. Agora eu me dedicava a olhar o espaço-tempo pela janela do apartamento, contemplando a ausência iminente da verde grama e das três árvores companheiras, maldizendo a planta de plástico inerte perto da janela, sempre a denunciar a minha vida descartável, sofrendo o jazz rasgado que doía, morrendo aos cigarros que ardiam na garganta. Senti-me triste ao olhar as árvores, inconscientes de sua morte tão próxima. E num momento pensei que na verdade eu é que era digno de piedade. As árvores podem viver a sua totalidade justamente por não terem consciência do seu fim. [Elas simplesmente são.] Eu, do contrário, estava condenado a experimentar a certeza do fim. E qualquer dor já era o fim. Via-me pequeno e sentia a morte gota a gota – a morte da ausência, a morte da solidão jazzeada, a morte do pensamento que só quer morrer.

Desde então aprendo muito com aquelas árvores. Acompanhar o seu dia-a-dia têm sido todos os meus dias. Olho-as como quem quer partilhar os últimos dias de um doente em fase terminal. Sei que é, na verdade, para disfarçar o meu próprio fim. Definho como um Narciso diante do espelho verde. E sempre que posso (ou quando sinto insuportável saudade do amor?) desço após as chuvas para molhar-me na umidade dos seus galhos e da relva que se estende como uma extensão dos troncos altos e firmes. E de lá ainda posso ouvir Ella cantando, o queimar do cigarro no parapeito, e o mais doloroso, aqueles passos se distanciando.

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