quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sobre 174 e outros "invisíveis"


Na última semana tive a feliz oportunidade de rever o documentário de João Padilha, “Ônibus 174”. Fiquei novamente estarrecido com o grau de problematização com que o diretor conseguiu explorar a trágica jornada de Sandro do Nascimento, jovem de 21 anos que, numa tarde no centro do Rio de Janeiro, invadiu um ônibus e manteve vários reféns por mais de quatro horas inteiras sob a mira do seu revólver e das câmeras de todo o Brasil.

A simples resistência a um maniqueísmo (característico de um “Tropa de Elite”, por exemplo) já seria o suficiente para que o documentário merecesse elogios. A capacidade de mostrar o sequestro do ônibus de forma estrutural, pensando a relação entre um “fatídico evento” isolado e toda uma sociedade, que se equilibra a todo o tempo entre a tensa linha do moderno e do arcaico, do progresso e do atraso, faz-nos enxergar o problema de maneira sistêmica.

O Sandro do Nascimento, como afirma um dos estudiosos que figuram no documentário, é um dos meninos invisíveis lutando contra essa "invisibilidade" a que a condição de marginal lhe relega. Uma invisibilidade no tocante à cidadania, posto que no dia-a-dia eles são bastante evidentes, a ponto de fazer fechar os vidros dos carros, trocar de faixa, fechar as cotinas e trancar mais um cadeado - paradoxalmente, uma invisibilidade que amedronta, que incomoda, que aterroriza. O ato do "menino invisível", no centro do Rio de janeiro, sob a mira da mídia e da imprensa mundial, é o grito de uma horda de miseráveis que clama por algum tipo de atenção, um soco no estômago, como toda pobreza, que como afirma Rodrigo SM, personagem-narrador de Clarice Lispector em A hora da estrela, é "feia e promíscua".

Inevitável foi ver o documentário e não me lembrar de Rubem Fonseca, do realismo feroz e dilacerante de sua literatura, que narra frequentemente histórias de tantos "Sandros" e de seus insucessos, tal como em "O Cobrador", outro grito social escancarado de um homem que se rebela contra toda e qualquer cobrança de uma sociedade que só lhe tira, só lhe toma. No consultório dentário, ao afirmar que não iria pagar a conta e diante da resistência do dentista, a narrativa prossegue:

"Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes, deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.

Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!

(...)

Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo."

Impossível não concordar com o personagem de Rubem Fonseca. Todos eles, todos nós estamos lhes devendo muito. E uma hora eles aparecem para cobrar o que lhes é de direito. "Só rindo"







3 comentários:

  1. Eita, querido amigo. Uma coincidência. Tô por cá no Rio, trabalhando num evento do FNDE, que está acontecendo ao lado da igreja da Candelária. Ontem mesmo, por curiosidade, fui ler sobre a Chacina da Candelária. Sabia que Sandro do Nascimento é um dos sobreviventes da Chacina? Nunca um invisível apareceu tanto na história desse país. Claro, agora a gente fala de história assim: tudo é história. Não dá mais pra falar só da história dos poderosos. Bjokonas!
    Carol

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  2. Olá Rafael! Antes de tudo quero parabenizá-lo por seu blog e também por sua atuação como professor. Realmente suas postagens são muito interessantes e demonstram suas críticas a respeito da sociedade, o que é muito importante, pois o primeiro passo para a construção de um mundo melhor é a identificação dos problemas implícitos em nossas vidas pela falta de solidariedade e pela enorme desigualdade social desse país.
    Para completar esse espaço virtual, só falta um texto explicando a diferença entre gênero textual e tipo textual. Olha aí um texto bem legal sobre esse assunto:

    http://www.webartigos.com/articles/2794/1/generos-textuais-e-o-discurso-das-charges/pagina1.html

    Rayan Coelho.

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