quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Biografia em fragmentos III


- Quer jogar videogame?

- Desculpe, não tenho dinheiro para fliperama...

- Não, na minha casa, bobo!

Os olhos do menino brilhavam diante do convite. Afinal, videogame era coisa de gente rica e sua pobreza não lhe permitia pensar nessas luxúrias. Videogame era caro, contentava-se em ver de vez em quando na volta do colégio, os meninos brincando no fliperama da esquina.

- Sim, lá em casa! Minha mãe me deu um novo, tô morrendo de vontade de estrear.

Sua maldade de criança o fez odiar por um instante aquele pequeno burguês que tinha um videogame “novo”, enquanto ele sequer tinha direito à vaidade de sonhar com um velho. No instante posterior, deu-se a pensar o que teriam eles feito com o videogame velho. Fora dado a um primo pobre, que agora já nem era mais pobre porque tinha videogame; ou entregaram para o bazar da Igreja que ajuda as crianças carentes, desprezando a sua carência de menino sem videogame; venderam mais barato para comprar o novo; não, eles não precisavam de dinheiro velho para comprar coisas novas. Essa gente rica sempre tem dinheiro, dinheiro novinho em folha, que brota em jarros cultivados no jardim de suas casas ricas. Jogaram fora.

- Jogaram fora? Perguntou entre irritado e indignado, mas tentando disfarçar a sua raiva.

- Sim, já estava velho, ninguém ia querer mesmo!

“Eu ia querer, eu quero”, pensava o menino resignado de seu lugar distante. Procuraria nos aterros sanitários se pudesse, abriria lixo por lixo, duelando com catadores, urubus e meninos-caçadores-de-video-game-de-gente-rica. Lixo precioso. Talvez o lixeiro que recolhia todos os dias os sacos daquela casa rica tivesse percebido um peso diferente, um formato diferente. Talvez o filho do lixeiro se sentisse menos pobre por ter com que brincar. Talvez o lixeiro não tivesse percebido nada e o videogame já tivesse em cacos, triturado por máquinas que destroem coisas que algumas crianças gostariam de ter impedido.

- Meus irmãos vem me buscar, não posso sair sem avisar! Disse consternado.

- Então tá bom, vou correr para ter mais tempo para brincar!

Nessa hora, ele viu a sua oportunidade de entrar numa casa rica, de ver de perto os ricos, de jogar o videogame, descerem para a rua de trás. Não poderia deixar de aproveitar essa chance. Sua pobreza não lhe deu opção. Escreveu rapidamente um bilhete endereçado aos irmãos que o buscariam dentro de instantes e pendurou no alambrado da escola. Sua inocência e ambição o impediram de lembrar que era necessário escrever o endereço da casa do amigo, a fim de que os irmãos soubessem aonde buscá-lo. Não o fez. Saiu em disparada tentando alcançar o amigo rico.
Quando cruzava a rua cheia de carros, podia sentir o bilhete voando lá atrás...

Biografia em fragmentos II ou Que saudades do mimeógrafo!


De vez em quando olho para os meus alunos e penso: qual deles mais se parece comigo quando tinha essa idade? Difícil imaginar, todos parecem espertos demais, astutos demais. E não sei até que ponto isso é bom ou ruim. Ora invejo essas crianças que parecem atualmente chegar prontas no mundo, ora lastimo a geração que não brinca mais de mamãe-da-rua, garrafão e “cai no poço”. O fato é que não me reconheço em nenhum dos meus alunos, perto deles eu era um estranho “nerd”, se é que ainda se usa essa palavra... gíria caduca!
Lembro de quando estava na terceira série e vi um colega (repetente e por isso maior e mais velho) portando uma carteira de cigarros. Não sei até hoje se ela fumava mesmo ou se queria apenas impressionar os menores e medrosos como eu. O que sei é que sentia que só por dividir a mesma sala com ele eu já era um fumante. Um fumante, um criminoso com oito anos de idade. Roguei a minha mãe que me livrasse do maldito vício de conviver com um fumante; carga pesada demais para mim.
No mesmo ano, o aluno mais aplicado da turma teria sua primeira decepção. Com a disciplina de um samurai, orgulhava-me dos meus SS’s, dos vistos carimbados da professora acrescidos da inscrição com letra de normalista – “parabéns!”. Numa fatídica manhã, quando a professora devolvia as provas de matemática, pude sentir o peso de 300 quilos do MI (média inferior) que desabava sobre a minha cabeça. O mundo começava a ficar em slow motion, quase que paralisado pela vergonha da nota vermelha. Naquela hora, fiz o que qualquer homem de oito anos faria: chorei copiosamente, desbragadamente ao pensar na mancha vermelha que marcaria para todo o sempre a minha vida, e o mais grave: o meu histórico escolar. Ao ver o meu desespero, a professora chamou-me para tomar a tabuada, a que de pronto respondia, tentando ignorar os soluços convulsos que me dificultavam a fala. Certa de que eu sabia do conteúdo, a tia-professora modificou a nota, fazendo o vergonhoso MI transmutar-se em um medíocre MM, o que nem de longe me contentou. Continuei chorando. O MM de piedade não foi suficiente para apagar a vergonha por que passara. Hoje penso na falta de sensibilidade da professora que não enxergou o erro de percurso, que deu mais importância a uma menção do que ao menino do SS-parabéns-plus! Nunca mais consegui fazer uma prova de matemática tranqüilo. O medo do fracasso surgia aliado à imagem da professora questionando: três vezes três; seis vezes oito; sete vezes cinco; igual a frio na espinha, amnésia momentânea e uma notinha mediana para não cair no choro outra vez, denunciando os oito anos que não saem mais.
Embora morasse pertinho da escola, saía de casa com pelo menos 45 minutos de antecedência. Não porque tinha medo de chegar atrasado, o que era quase impossível, mas somente para ser o primeiro da fila e pegar na mão da professora na hora de ir para a sala de aula. Pegar na mão da professora era uma honra; poder ajudá-la a carregar o seu material então era a glória. E, parafraseando Leminski, eu carregava aquelas pastas, cadernos, caixinhas, “como se portasse medalhas, uma coroa, um milhão de dólares ou coisa que os valha”. Era o rei da classe. O rei da tia-professora.
Meu maior sonho era um dia ajudá-la a “rodar” o material da aula. Rodar o material era fazer uma espécie de impressão manual utilizando o arcaico mimeógrafo – uma máquina pesadíssima movida a litros e litros de álcool que imprimiam no branco do papel em contornos lilázes, arroxeados, os desenhos que com felicidade coloríamos e dávamos vida. Alguns coloriam desordenadamente, como rabiscos ferozes e cores inesperadas, como o meu irmão que insistia em pintar o pato de azul; outros, mais cuidadosos e nem por isso mais saudáveis, já arraigados a pequenas estruturas, perseguiam com fôlego a verossimilhança e dava ao pato cor de pato, à árvore cor de árvore. A diferença entre um e outro é que aqueles – dos patos azuis, tornaram-se adultos mais livres, estão mais à vontade na vida, sabem que a vida se colore com o lápis que se tem, compreendem bem a filosofia do limão (“se a vida te der limões, então faça uma limonada!”). Isso mesmo, ao vencedor, os limões! Os demais estão presos a um perfeccionismo, aos padrões impostos e pagam em dobro os impostos padronizados. Estes percorrem toda parte procurando a cor mais adequada, mais verossímil, a aquarela perfeita, e não se dão conta de que a corrida cega pelo caminho dito certo acaba transformando a vida num retrato em preto e branco. (Estou pensando em me lançar no mercado da auto-ajuda, menos por acreditar no meu talento na área e mais por sonhar com as cifras e com um castelo só para mim!).
O fato é que um dia, a memorável professora deu-me o prêmio de rodar o material da aula. Entre orgulhoso e tímido, girava a manivela vendo saírem como num passe de mágica os desenhos que pintaríamos dali para frente. Sentia-me professor, irmanava-me a ela no ofício de transformar papel branco em lição, em tarefa, em letras, números, textos, em vida. Era a vida que eu via acontecer naquela hora. Um fragmento de vida na atividade prosaica de uma professora e de seu aluno que descobria como as coisas aconteciam por trás das câmeras, como se planejavam os pequenos exercícios que nos faziam compreender outras coisas, também da vida – umas mais, outras bem menos importantes. Inebriado pelo álcool, rodei o material. Naquele dia, senti-me co-autor, via um pedaço de mim nos trabalhinhos que meus colegas manejavam. E eu não pintava mais, reinava acreditando que já era professor. Sem que eu soubesse, ensaiava os passos de um futuro conflitante.