quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

"todos os meus amigos têm sido campeões em tudo..."


Tenho verdadeiro horror a vestibular e tudo o que se criou em torno dele. Odeio os discursos de supremacia, o elogio à competição; odeio o ódio cultivado entre os concorrentes que chegam a desejar a morte uns dos outros na esperança de sobrar uma vaga...
O vestibular, como se tem posto, enquadra as aulas, que, diga-se, há muito não são espaços de criação e diálogo. Somos obrigados a adivinhar como a questão cairá na prova, quais as opções corretas, como operar a prova como uma máquina, e acabamos todos por nos tornar máquinas de conteúdos enciclopédicos.
É evidente que em muitos processos seletivos já se pode notar avanços colossais, que priorizam a aplicabilidade dos conhecimentos m detrimento do “decoreba” tradicional. O que me entristece é deparar com quarenta alunos que só enxergam o Dom Casmurro como uma ponte para a Universidade.
Outra questão digna de horror é a síndrome dos concursos públicos...
Morando em Brasília parece natural que vivamos sob a batuta dos processos seletivos. Uma legião de “concurseiros”, armados de apostilas e legislações, vagam pela cidade com cifras nos olhos em busca de editais. Não critico o sonho de um bom emprego, de estabilidade financeira, de praia nas férias e dinheiro para o cinema; critico a fúria cega que os assola na busca de uma conta bancária recheada e não d uma profissão. Aliás, profissão, vocação, talento parecem meio fora de moda na contemporaneidade. As palavras de ordem são outras, mais economicamente viáveis. Há um notável apagamento da idéia de “serviço público”, em seu sentido último – o de servir, de “dar sua contribuição para o nosso belo quadro social”. Em lugar de serviço, carreira.
“Os concurseiros”, uma espécie ainda carente de estudo atencioso, não escolhem as provas por afinidade, visando de que forma melhor podem “servir o público”, mas pautados pela remuneração. É claro que também são vítimas de uma sociedade que ensina desde cedo que não se ganha o segundo lugar...
Sei que cinco mil reais conseguem minimizar a depressão diante de uma sala cinza com persiana torta, parede mofada, telefone mudo, copo d’água, carimbos e papéis; não sei, porém por quanto tempo.
“E eu que tenho sido vil, literalmente vil” sonho utopicamente com o dia em que as provas serão abolidas e a competição desenfreada será apenas lembrança de outrora. “Estou farto de semideuses”.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Biografia em fragmentos III


- Quer jogar videogame?

- Desculpe, não tenho dinheiro para fliperama...

- Não, na minha casa, bobo!

Os olhos do menino brilhavam diante do convite. Afinal, videogame era coisa de gente rica e sua pobreza não lhe permitia pensar nessas luxúrias. Videogame era caro, contentava-se em ver de vez em quando na volta do colégio, os meninos brincando no fliperama da esquina.

- Sim, lá em casa! Minha mãe me deu um novo, tô morrendo de vontade de estrear.

Sua maldade de criança o fez odiar por um instante aquele pequeno burguês que tinha um videogame “novo”, enquanto ele sequer tinha direito à vaidade de sonhar com um velho. No instante posterior, deu-se a pensar o que teriam eles feito com o videogame velho. Fora dado a um primo pobre, que agora já nem era mais pobre porque tinha videogame; ou entregaram para o bazar da Igreja que ajuda as crianças carentes, desprezando a sua carência de menino sem videogame; venderam mais barato para comprar o novo; não, eles não precisavam de dinheiro velho para comprar coisas novas. Essa gente rica sempre tem dinheiro, dinheiro novinho em folha, que brota em jarros cultivados no jardim de suas casas ricas. Jogaram fora.

- Jogaram fora? Perguntou entre irritado e indignado, mas tentando disfarçar a sua raiva.

- Sim, já estava velho, ninguém ia querer mesmo!

“Eu ia querer, eu quero”, pensava o menino resignado de seu lugar distante. Procuraria nos aterros sanitários se pudesse, abriria lixo por lixo, duelando com catadores, urubus e meninos-caçadores-de-video-game-de-gente-rica. Lixo precioso. Talvez o lixeiro que recolhia todos os dias os sacos daquela casa rica tivesse percebido um peso diferente, um formato diferente. Talvez o filho do lixeiro se sentisse menos pobre por ter com que brincar. Talvez o lixeiro não tivesse percebido nada e o videogame já tivesse em cacos, triturado por máquinas que destroem coisas que algumas crianças gostariam de ter impedido.

- Meus irmãos vem me buscar, não posso sair sem avisar! Disse consternado.

- Então tá bom, vou correr para ter mais tempo para brincar!

Nessa hora, ele viu a sua oportunidade de entrar numa casa rica, de ver de perto os ricos, de jogar o videogame, descerem para a rua de trás. Não poderia deixar de aproveitar essa chance. Sua pobreza não lhe deu opção. Escreveu rapidamente um bilhete endereçado aos irmãos que o buscariam dentro de instantes e pendurou no alambrado da escola. Sua inocência e ambição o impediram de lembrar que era necessário escrever o endereço da casa do amigo, a fim de que os irmãos soubessem aonde buscá-lo. Não o fez. Saiu em disparada tentando alcançar o amigo rico.
Quando cruzava a rua cheia de carros, podia sentir o bilhete voando lá atrás...

Biografia em fragmentos II ou Que saudades do mimeógrafo!


De vez em quando olho para os meus alunos e penso: qual deles mais se parece comigo quando tinha essa idade? Difícil imaginar, todos parecem espertos demais, astutos demais. E não sei até que ponto isso é bom ou ruim. Ora invejo essas crianças que parecem atualmente chegar prontas no mundo, ora lastimo a geração que não brinca mais de mamãe-da-rua, garrafão e “cai no poço”. O fato é que não me reconheço em nenhum dos meus alunos, perto deles eu era um estranho “nerd”, se é que ainda se usa essa palavra... gíria caduca!
Lembro de quando estava na terceira série e vi um colega (repetente e por isso maior e mais velho) portando uma carteira de cigarros. Não sei até hoje se ela fumava mesmo ou se queria apenas impressionar os menores e medrosos como eu. O que sei é que sentia que só por dividir a mesma sala com ele eu já era um fumante. Um fumante, um criminoso com oito anos de idade. Roguei a minha mãe que me livrasse do maldito vício de conviver com um fumante; carga pesada demais para mim.
No mesmo ano, o aluno mais aplicado da turma teria sua primeira decepção. Com a disciplina de um samurai, orgulhava-me dos meus SS’s, dos vistos carimbados da professora acrescidos da inscrição com letra de normalista – “parabéns!”. Numa fatídica manhã, quando a professora devolvia as provas de matemática, pude sentir o peso de 300 quilos do MI (média inferior) que desabava sobre a minha cabeça. O mundo começava a ficar em slow motion, quase que paralisado pela vergonha da nota vermelha. Naquela hora, fiz o que qualquer homem de oito anos faria: chorei copiosamente, desbragadamente ao pensar na mancha vermelha que marcaria para todo o sempre a minha vida, e o mais grave: o meu histórico escolar. Ao ver o meu desespero, a professora chamou-me para tomar a tabuada, a que de pronto respondia, tentando ignorar os soluços convulsos que me dificultavam a fala. Certa de que eu sabia do conteúdo, a tia-professora modificou a nota, fazendo o vergonhoso MI transmutar-se em um medíocre MM, o que nem de longe me contentou. Continuei chorando. O MM de piedade não foi suficiente para apagar a vergonha por que passara. Hoje penso na falta de sensibilidade da professora que não enxergou o erro de percurso, que deu mais importância a uma menção do que ao menino do SS-parabéns-plus! Nunca mais consegui fazer uma prova de matemática tranqüilo. O medo do fracasso surgia aliado à imagem da professora questionando: três vezes três; seis vezes oito; sete vezes cinco; igual a frio na espinha, amnésia momentânea e uma notinha mediana para não cair no choro outra vez, denunciando os oito anos que não saem mais.
Embora morasse pertinho da escola, saía de casa com pelo menos 45 minutos de antecedência. Não porque tinha medo de chegar atrasado, o que era quase impossível, mas somente para ser o primeiro da fila e pegar na mão da professora na hora de ir para a sala de aula. Pegar na mão da professora era uma honra; poder ajudá-la a carregar o seu material então era a glória. E, parafraseando Leminski, eu carregava aquelas pastas, cadernos, caixinhas, “como se portasse medalhas, uma coroa, um milhão de dólares ou coisa que os valha”. Era o rei da classe. O rei da tia-professora.
Meu maior sonho era um dia ajudá-la a “rodar” o material da aula. Rodar o material era fazer uma espécie de impressão manual utilizando o arcaico mimeógrafo – uma máquina pesadíssima movida a litros e litros de álcool que imprimiam no branco do papel em contornos lilázes, arroxeados, os desenhos que com felicidade coloríamos e dávamos vida. Alguns coloriam desordenadamente, como rabiscos ferozes e cores inesperadas, como o meu irmão que insistia em pintar o pato de azul; outros, mais cuidadosos e nem por isso mais saudáveis, já arraigados a pequenas estruturas, perseguiam com fôlego a verossimilhança e dava ao pato cor de pato, à árvore cor de árvore. A diferença entre um e outro é que aqueles – dos patos azuis, tornaram-se adultos mais livres, estão mais à vontade na vida, sabem que a vida se colore com o lápis que se tem, compreendem bem a filosofia do limão (“se a vida te der limões, então faça uma limonada!”). Isso mesmo, ao vencedor, os limões! Os demais estão presos a um perfeccionismo, aos padrões impostos e pagam em dobro os impostos padronizados. Estes percorrem toda parte procurando a cor mais adequada, mais verossímil, a aquarela perfeita, e não se dão conta de que a corrida cega pelo caminho dito certo acaba transformando a vida num retrato em preto e branco. (Estou pensando em me lançar no mercado da auto-ajuda, menos por acreditar no meu talento na área e mais por sonhar com as cifras e com um castelo só para mim!).
O fato é que um dia, a memorável professora deu-me o prêmio de rodar o material da aula. Entre orgulhoso e tímido, girava a manivela vendo saírem como num passe de mágica os desenhos que pintaríamos dali para frente. Sentia-me professor, irmanava-me a ela no ofício de transformar papel branco em lição, em tarefa, em letras, números, textos, em vida. Era a vida que eu via acontecer naquela hora. Um fragmento de vida na atividade prosaica de uma professora e de seu aluno que descobria como as coisas aconteciam por trás das câmeras, como se planejavam os pequenos exercícios que nos faziam compreender outras coisas, também da vida – umas mais, outras bem menos importantes. Inebriado pelo álcool, rodei o material. Naquele dia, senti-me co-autor, via um pedaço de mim nos trabalhinhos que meus colegas manejavam. E eu não pintava mais, reinava acreditando que já era professor. Sem que eu soubesse, ensaiava os passos de um futuro conflitante.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Sangue e sintonia


Para os meus irmãos (de sangue e de sintonia)


Quando vez por outra me perguntam quantos irmãos eu tenho, costumo responder com uma outra pergunta: irmãos de sangue ou de sintonia? Sim porque de sangue é bem fácil responder (E são cinco, por sinal!), mas irmãos de sintonia... árdua tarefa, a lista cresce e os critérios são bem diferentes.

Irmãos sanguíneos não escolhemos. Somos obrigados ao convívio – para o bem e para o mal. Dividimos a dura missão de ser família, com tudo o que essa palavra implica. As brigas por causa das roupas, pelo melhor lugar no sofá, pelo tempo no banheiro, por conta da organização das prateleiras, do guarda-roupa, da vida enfim.

Neles nos vemos e vemos tudo o que também não queremos ser. Admiramos suas virtudes e odiamos (na maioria das vezes) admitir a tietagem. Enredados numa relação complicada, somos os amigos mais leais e os inimigos mais perigosos por conhecermos os pontos fracos do oponente, além de dispor de uma interminável lista de vexames familiares e histórias de infância capazes de desmoralizar o mais idôneo pai de família. Saboreamos em volta da mesa as palavras amor, união, companheirismo, dificuldade, vitória, dor, alegria e tristeza, passando de mão em mão aquilo que é de um e é de todos. Entre irmãos não há possibilidade de esconder muito, as sombras revelam, as paredes são cúmplices e mancomunam fraternalmente.

Lembro que certa vez a minha mãe acusou-me de não gostar do meu irmão mais velho. Lembro também que na hora me perguntei como era possível medir o amor, como calcular em peso e medida algo tão insólito, tão inefável quanto a fraternidade? A mãe falava do seu lugar de leoa defendendo a cria, embora ela soubesse que havia amor entre nós, só que não precisava declarar.

Incrível como conseguimos falar tão facilmente que amamos os outros que não são família. Para amigos, namoradas, soa quase que deslizante o ‘eu te amo’ desejado. Escorre fluido e sem receios a declaração mais esperada pela humanidade: ‘eu te amo’! Eu-te-amos que pelo repetitório perdem a força expressiva, não comunicam a inteireza da entrega que é o amor. Declaração que, no entanto, insiste em esperar do lado de fora do muro da casa da gente, torcendo ardentemente para que os gestos, os favores, a presença falem por si. Dentro de casa o amor se transforma em ajuda na lição de casa, em copo d’água, em silêncio.

Mas para além dos laços genéticos, outros são escolhidos para compor uma família cuja ligação se dá sem a força violenta do sangue. A relação se constrói, “tijolo por tijolo num desenho mágico”. A isso chamamos amizade.

Os amigos estão a todo tempo sob ameaça de esquecimento

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eu sou um clichê!


Querida Carol,

Sinto falta de quando tínhamos tempo de conversar sobre as inutilidades cotidianas que enchiam nossa vida de sentido...
Lembro com saudade de quando caminhávamos após a escola, ignorando o sol de meio-dia e as seis exaustivas aulas que nos aprisionavam temporariamente. Mas sabíamos o que era liberdade - a liberdade dos que não vivem atados aos grilhões dos boletos bancários, das contas de água, luz e telefone. Saudade da adolescência que parecia não passar e que hoje está tão distante. Se fechar os olhos, ainda me lembro da mochila jeans, dos tênis desgastados, dos cadernos de matéria que serviam para forrar o assento,para calço de mesa, para marcar o lugar na sala, além, é claro, de ser o repositório da famigerada trigonometria.
Como o tempo passava rápido nas rodas de truco, como éramos onipotentes - cavaleiros armados: em lugar da espada e da armadura, canetas e uniforme escolar. Nossos medos eram nossos brinquedos. Com a "alma de sonhos povoada", regíamos tempestades, desafiávamos os limites do tempo, da rotina, do corpo; rasgávamos as fotos dos nossos heróis, depois colávamos os pedaços novamente.
Sinto falta das preocupações da época, de quando nos orgulhávamos dos nossos problemas, competíamos para ver quem era o mais incompreendido. Afinal, ser adolescente é ter uma vida boa e querer lágrimas e consolo. Éramos nós mesmos os nossos analistas (freudianos, junguianos, lacanianos, sei-lá). Despejávamos teorias complexas formuladas da altura dos nossos quinze anos. E o mais incrível: vislumbrávamos algo de cura!
Nossa revolução era um abaixo-assinado. Azar o das baleias, dos micos perseguidos, da emissão de CO2; nossa luta era contra nossos professores, contra nossos pais, contra nossa adolescência e imaturidade, enfim, contra nós mesmos. Não dá para dizer que éramos rebeldes sem causa. Nossas causas é que eram pequenas para os olhos adultos e grandes demais para os limites do nosso quarto.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Recado para Quino




Quisera tivesse eu inventado essa menina
E seus amigos e sua filosofia...
E assim na tal roda viva
Repleto, imerso estaria
Das verdades que fala brincando

Um mundo novo brotante
Sem sopas sem burocratas
Sem lições pregadas na parede

Ou consertaria de vez esse mundo
Ou pregaria mais um band-aid!

Anunciação



Quando eu nasci
o anjo Gabriel andava a anunciar
outros nascimentos de outros rebentos
de destinos bons por traçar
A mãe que sonhava com o anjo mensageiro
Deu logo de abrir o berreiro
quando poor outro seu filho foi anunciado:
"Sou o anjo Rafael
No céu estava a descansar do grande fado
de ser anjo curador do povo inteiro.
Terás um filho e serás abançoado,
atrapalhado e um tanto desordeiro.
Terá no sangue a esperteza e o gingado
como todo nascituro brasileiro.
De alma forte, há de enfrentar guerreiro
os moinhos ou dragões que ameaçá-lo.
E por certo há de ter pelo caminho
A vocação de ensinar sendo ensinado."
A mãe que chorava demasiado
Deu-me pois o nome de "Deus Cura"
Em homenagem ao anjo querubim
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito,
pelos séculos dos séculos sem fim"

Imagem: Marllon Martins

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Das dores e delícias de ser professor


Das dores e delícias de ser professor
A todos os meus mestres

Dia sim, dia não, amanheço com vontade de desistir de ser professor. Penso que preciso livrar-me urgente da (des)ventura de gostar de ser professor. E gosto, como gosto! Para o bem e para o mal. Em algum momento conscientemente escolhi esse caminho – ou deveria dizer via crucis para irmanar-me aos discursos tão senso comum que ao longo de séculos deram ao magistério o status de sacerdócio por piedade?
Invejo o Mr. Keating e sua coragem de rasgar os protocolos dos malditos burocratas da educação, enquanto sinto-me cada vez mais entranhado aos grilhões do que posso chamar “mercadão de disciplinas”. Enredamo-nos, nós professores, numa extensa e nebulosa relação enciclopedista, violenta, cansativa e, por diversas vezes, subumana de trabalho.
(Querida, espero ansioso o dia em que será considerado crime aplicar prova para os alunos!)
Tenho dito ultimamente que preciso desistir da profissão enquanto ainda posso me orgulhar do que já fiz. Pois não muito distante, vejo vir o tempo em que a mediocridade assola. E Deus sabe como a medianidade me apavora!
Eu sempre quis ensinar-aprender a vida, sem grandes tratados, sem os apertos e sufocos das teorias totalizantes, colher o fruto da vida no auspicioso trajeto de construir saberes e experimentar sabores diversos. Quis partilhar idéias, trocar poesias que fluíam não por exibicionismo dos prodígios da memória, mas por amor ao verso, por prazer em ver e ouvir estrelas, como disse o poeta. E, para não ser de todo pessimista, creio que foi por isso que ainda não entreguei todos os pontos. Por acreditar (embora ingenuamente) no poder da poesia. Lembro-me do professor de segundo grau que nos hipnotizava ao recitar “A ave” de Jorge de Lima, propiciando uma verdadeira catarse, ainda que a nossa falta de cabedal nos impedisse de alcançar a força desse termo. Sentíamo-nos todos como a ignota ave que “ninguém sabia de onde viera”, antropomorfa como um anjo e solitária como qualquer poeta. Naquele tempo decidi ser hipnotizador também. Descobri que ser professor, tal qual o poeta, é ser solitário, sozinho nas amargas frustrações diante da impossibilidade de transformar rápida e efetivamente o mundo, diante da falência da fábula do beija-flor perante o imensurável incêndio que destrói famílias, projetos, sonhos íntimos; os deles e os meus. Era nisso que eu acreditava: na força da docência como projeto, como “pedagogia da autonomia”, que liberta os oprimidos, que devolve os reinos quem de direito. Sinto-me desamparado dessa fé inabalável, não aquela fé cega e inocente, mas a que move, que gera coragem.
Outro dia um aluno escreveu-me dizendo que gostaria de fazer algo mais pela educação, para transformar a sua escola, a sua realidade. Suas palavras emocionaram-me de uma forma encantante. Não consegui responder ainda. Como Gandhi, preciso viver o desejo dele para que minhas palavras não soprem falsas ilusões e vagas esperanças. E assim prossigo, dia sim, dia não, acreditando que posso recomeçar e olhar o mundo de outro ângulo, quem sabe por cima das velhas carteiras da minha escola... Oh Capitain, my capitain!!!

Divagações da meia-noite


Divagações da meia-noite

Tanto tempo depois eu achava que não doía mais tanto. Ou que de fato não doía. Equivocado, deparei-me com a dilacerante consciência da dor, mais cruel que a própria dor. E foi assim que percebi que ainda fazia falta, que ainda abalava os alicerces da memória o encontro com a desassossegada história de meio-amor que vivi há séculos.
Odeio as suas máximas, frases prontas, recortadas de um dicionário qualquer de citações. Expressões latinas, aforismos de filósofos da puta que o pariu que enchem de dor a porra de um coração cheio de band-aids!
“Toma um fósforo, acende o teu cigarro/o beijo amigo é a véspera do escarro!” [Gargalhadas] E não é que o desgraçado tinha razão... Em quem se pode confiar, meu caro Watson!? Watson, desce daí, Watson, não mija no tapete! Watson, cachorro maldito, deixa eu escrever sobre a merda da minha vida amorosa!!! Tá, desculpe. Eu sei que é a sua maneira de pedir atenção, carinho! Tá carente também não é, meu amigo!? Amanhã vamos passear, arranjar duas cachorras, uma pra mim, outra pra você, já que somos dois cachorros, que diferem apenas pelo grau de lealdade, de companheirismo, blá blá blá – Tudo bem, você venceu Watson!

quinta-feira, 12 de março de 2009

"A arte ensina à vida o seu dever..."

Fico impressionado e cada vez mais convencido do poder da arte de nos fazer enxergar a realidade de uma maneira diferenciada (mais alta. Mais certa?). Por meio dela percebemos que a inventividade, a imaginação não se configura como mentira, mas como um universo alternativo, justamente para nos forçar a ver o que nos era negado – pelo outro e por nós mesmos. Nas palavras de Pessoa: “eu simplesmente sinto com a imaginação”...

Num primoroso conto de Monteiro Lobato (“Duas cavalgaduras”), um leitor fictício numa certa altura da narrativa pergunta ao narrador: “Mas isto, afinal de contas, é vida ou romance?”. Ao que ele responde: “Grande tolo... É a vida com a lição da arte. A arte corrige a vida, dizendo-lhe: se não és assim, fera, devias sê-lo; se não procedeste assim, harpia, devias ter procedido (...) A arte ensina à vida o seu dever.

Penso isso pela dificuldade em que me vejo muitas vezes ao discutir tal assunto com alunos – esse potencial de suspensão de uma realidade material, palpável, mas que mantém a todo momento comprometimento com ela, ainda que fale das coisas mais absurdas. Desse modo, o mundo coberto de preás de Baleia, os gigantes-moinhos de Dom Quixote, os baobás e as rosas do pequeno Príncipe nos apontam a supremacia de sonhar a vida. Na leitura experimentamos um eixo interminável de possibilidades de existir, seja na identificação com as personagens, seja na intromissão ao julgar as traição e transações de outras vidas que não a nossa, de outras dores que não as nossas. E prosseguimos lendo e alimentando essa máquina preguiçosa que é o texto (como afirma Umberto Eco), dando forma às diversas encadernações em que podemos existir.

terça-feira, 10 de março de 2009

Das reflexões sobre o Jazz


Da janela podia ver o espaço ainda verde com três grandes árvores, uma grama imensa e molhada pelo sereno que sucedia a chuva caudalosa de horas atrás. Senti pena ao saber que ali construiriam um novo prédio. Barulhos, cimento, buracos... sufocariam a única possibilidade de vida que me restava para ver. Surpreendi-me com a sensibilidade que me acometia. Busquei a minha própria vida, ou o que restava dela como alento. Vida de plástico, puro polímero degradado pela fumaça do cigarro que subia branca e lenta, enquanto Ella cantava e se espalhava na sala quase escura. A vida era a falta. Faltava-me o vinho, faltava-me o whisky, nada mais que duas cervejas velhas na geladeira eram o que eu tinha para fingir a secura doce do vinho e a embriaguez do whisky. Serviriam no momento. O que eu mais sabia era fingir, por isso a falta. Lembrei-me de Caio Fernando Abreu: “existe sempre uma coisa ausente que me atormenta”.

Ella cantava e ela sumira deixando apenas os discos que eu aprendera a ouvir e pelos quais eu podia ouvi-la. Foi-se deixando espaços livres no meu dia. Agora eu me dedicava a olhar o espaço-tempo pela janela do apartamento, contemplando a ausência iminente da verde grama e das três árvores companheiras, maldizendo a planta de plástico inerte perto da janela, sempre a denunciar a minha vida descartável, sofrendo o jazz rasgado que doía, morrendo aos cigarros que ardiam na garganta. Senti-me triste ao olhar as árvores, inconscientes de sua morte tão próxima. E num momento pensei que na verdade eu é que era digno de piedade. As árvores podem viver a sua totalidade justamente por não terem consciência do seu fim. [Elas simplesmente são.] Eu, do contrário, estava condenado a experimentar a certeza do fim. E qualquer dor já era o fim. Via-me pequeno e sentia a morte gota a gota – a morte da ausência, a morte da solidão jazzeada, a morte do pensamento que só quer morrer.

Desde então aprendo muito com aquelas árvores. Acompanhar o seu dia-a-dia têm sido todos os meus dias. Olho-as como quem quer partilhar os últimos dias de um doente em fase terminal. Sei que é, na verdade, para disfarçar o meu próprio fim. Definho como um Narciso diante do espelho verde. E sempre que posso (ou quando sinto insuportável saudade do amor?) desço após as chuvas para molhar-me na umidade dos seus galhos e da relva que se estende como uma extensão dos troncos altos e firmes. E de lá ainda posso ouvir Ella cantando, o queimar do cigarro no parapeito, e o mais doloroso, aqueles passos se distanciando.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sobre 174 e outros "invisíveis"


Na última semana tive a feliz oportunidade de rever o documentário de João Padilha, “Ônibus 174”. Fiquei novamente estarrecido com o grau de problematização com que o diretor conseguiu explorar a trágica jornada de Sandro do Nascimento, jovem de 21 anos que, numa tarde no centro do Rio de Janeiro, invadiu um ônibus e manteve vários reféns por mais de quatro horas inteiras sob a mira do seu revólver e das câmeras de todo o Brasil.

A simples resistência a um maniqueísmo (característico de um “Tropa de Elite”, por exemplo) já seria o suficiente para que o documentário merecesse elogios. A capacidade de mostrar o sequestro do ônibus de forma estrutural, pensando a relação entre um “fatídico evento” isolado e toda uma sociedade, que se equilibra a todo o tempo entre a tensa linha do moderno e do arcaico, do progresso e do atraso, faz-nos enxergar o problema de maneira sistêmica.

O Sandro do Nascimento, como afirma um dos estudiosos que figuram no documentário, é um dos meninos invisíveis lutando contra essa "invisibilidade" a que a condição de marginal lhe relega. Uma invisibilidade no tocante à cidadania, posto que no dia-a-dia eles são bastante evidentes, a ponto de fazer fechar os vidros dos carros, trocar de faixa, fechar as cotinas e trancar mais um cadeado - paradoxalmente, uma invisibilidade que amedronta, que incomoda, que aterroriza. O ato do "menino invisível", no centro do Rio de janeiro, sob a mira da mídia e da imprensa mundial, é o grito de uma horda de miseráveis que clama por algum tipo de atenção, um soco no estômago, como toda pobreza, que como afirma Rodrigo SM, personagem-narrador de Clarice Lispector em A hora da estrela, é "feia e promíscua".

Inevitável foi ver o documentário e não me lembrar de Rubem Fonseca, do realismo feroz e dilacerante de sua literatura, que narra frequentemente histórias de tantos "Sandros" e de seus insucessos, tal como em "O Cobrador", outro grito social escancarado de um homem que se rebela contra toda e qualquer cobrança de uma sociedade que só lhe tira, só lhe toma. No consultório dentário, ao afirmar que não iria pagar a conta e diante da resistência do dentista, a narrativa prossegue:

"Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes, deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.

Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!

(...)

Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo."

Impossível não concordar com o personagem de Rubem Fonseca. Todos eles, todos nós estamos lhes devendo muito. E uma hora eles aparecem para cobrar o que lhes é de direito. "Só rindo"







segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Crônica sobre o amor (ou sobre o que sei do amor...)


“Eu lanço minha alma no espaço,
Você pisa os pés na terra

(...)

Eu grito por liberdade,
Você deixa a porta se fechar.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar”

(Moska. A seta e o alvo)

Não sei exatamente quando nós deixamos de acreditar no amor perfeito, no mito do príncipe e da princesa encantados. Quando deixamos de construir castelos e tecer sonhos amorosos? Quando começamos a enxergar que o amor pode estar mais longe do que pensávamos? A impressão que tenho é de que essa crença dura cada vez menos tempo. Talvez estejamos sendo bombardeados demais pelas histórias de fracassos. Talvez estejamos sendo esmagados pelos discursos atuais de relacionamentos modernos, de liberdade, de autonomia. Discursos que geralmente escamoteiam a fragilidade de uma vida desencontrada, de histórias interrompidas, de desencontros. É preciso investigar.

Esfregar em nossa cara os incontáveis casos de amor que não deram certo tem sido o esporte preferido daqueles que teimam em achar que, desacreditando na felicidade de um relacionamento, estarão imunes aos insucessos e desventuras que vida nos prega. Pelo contrário, adiar a labuta é protelar as chances de encarar o real da vida. O caminho talvez devesse ser outro – não desmitificar de vez o amor e fazer dele algo démodé, mas dar a César o que é de César, ou seja, discutir com mais lucidez o que vem depois do “felizes para sempre...”

Precisamos acreditar mais no amor, não o Cortez medieval, o romântico idealizado, o platônico inacessível, que criaram o estereótipo desse sentimento complicado, mas o amor do cotidiano de Chico Buarque, do café e do conflito, do açúcar e do afeto, da luta diária e árdua das vidas que se sustentam e se transmutam. Precisamos, sobretudo descobrir que amor se constrói, como se dá em qualquer tipo de convivência, qualquer tipo de relacionamento. O que muda quando se fala em amor é que estamos embebidos de uma carga histórica marcada por um romantismo “água com açúcar”, o mesmo que levou Emma Bovary ao fim, que nos impede de enxergar com mais clareza que o amor pode ser simples.

Li certa vez uma frase com força de sentença que me deixou bastante intrigado: “no fundo não somos tão compatíveis”. A frase me soou de início um tanto perigosa, queria talvez ser um ultimato, definitivo e irrevogável. Depois, pensando melhor nela percebi que era equivocada. O que chamavam de compatibilidade era na verdade semelhança, parecença, similitude. E, graças aos deuses, no fundo, no fundo mesmo, ninguém é parecido com ninguém. No fundo, no fundo mesmo, ninguém tem uma afinidade muito grande com ninguém. Nós aprendemos a parecer, a gostar do mesmo que o outro gosta, a responder o que o outro quer ouvir, a responder aos estímulos que o outro produz. Pois no fundo o que queremos é namorar nós mesmos, queremos projetar no outro as nossas expectativas, imprimir a nossa configuração e, por fim, ler o enredo que escrevemos com as letras douradas da ilusão. Voltamos, pois, a idealização.

Ser compatível, como o próprio dicionário registra, é “conciliar, coexistir, suportar”, o que é totalmente possível quando se fala de amor. Esse é o discurso que precisa animar a juventude descrente das questões amorosas – um amor que faz coexistir a seta e o alvo, cada um com sua particularidade, com seu modo ser no mundo. Um amor que concilia, não apaga as diferenças, não esconde as arestas, não escamoteia as sobras e as faltas, os desacertos, que inclusive, integram a idéia do amor total, posto que ele é também um lugar de aprendizado. Para lidar bem com o outro é preciso lidar bem conosco primeiro. Como disse Drummond, é preciso trilhar a difícil, “dangerosíssima” viagem de si a si mesmo”, e prosseguir “descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de com-viver”. Dessa maneira, nos aproximamos do amor (em linguagem de dicionário) como “viva afeição que nos impele para o objeto dos nossos desejos”, que sabe conciliar, coexistir, por vezes suportar, enfim, com-viver.

África em mim


Foi assim:

Eu a via todas as manhãs sem que ela me visse. Não fisicamente, é claro, pois estávamos quase sempre lado-a-lado. Ela, uma Rainha Africana dos reinos de Songhai, Mali, Gana, tanto faz, superior em sua realeza, e eu ensaiando uma postura tímida de súdito, esgueirando-me por entre colunas e pilastras anímicas para entrevê-la sempre ao longe. E via. Via do Saara por mim criado, num Sahel refugiado, mas via.

(Uma pausa para Chico: “Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão...”)

Via. Primeiro monalisticamente a insistir no seu quase-rir, depois de tempos sorria já meio de lado, como que tímida ou discreta, um tanto misteriosa, como é próprio de uma figura Soberana. Ainda assim o sorriso fulgurava e ganhava espaço uma gargalhada quase sisuda e imponente.

Sentado ao seu lado, refugiava-me em intermináveis leituras para evitar a gagueira e o desconserto que me acometiam quando nos falávamos. Adolescentemente sentia espinhas imaginárias crescerem por todo o meu rosto denunciando meu deslocamento. Ensaiei duas ou três vezes. Resolvia arriscar e lhe falei... da vida, das dores, das fraquezas, do medo da depressão.

(Inventei uma história — o enredo ainda me foge um pouco, mas os fios vão sendo trançados aos poucos, antes que o vento do esquecimento me leve esta fábula tristonha: ‘Era uma vez uma Princesa do Reino de Ndongo, com colares de Marfim, vestida de noite de lua cheia, sorriso de brilhantes...)

É assim:

Eu começava a falar, ela completava. Parecia me roubar as palavras à boca. Tentava adivinhar o que ela adivinharia dos meus gostos, das minhas músicas, das minhas comidas, das manias na próxima frase. Esbocei um gesto, soou prematuro. Recuei sem tocar-lhe a mão, mas sentia sua textura, guardava o possível aroma de pitanga madura em meu bolso.

(...vivia solitária e pedia aos Orixás o presente de amar. Zambi ouvia suas preces, bebia suas lágrimas e lhe negava um amor terreno por ciúme da bela princesa. Queria-a só para si...)

Assim será :?

Dificultosamente rompi as barreiras e os engasgos, toquei-a. O suficiente para buscar o futuro: Eu lhe recitava as poesias pela manhã, ela paciente ouvia, embora não gostasse: “Tu que me deste o teu carinho/ que me deste o teu cuidado,/ acolhe ao peito, como o ninho acolhe o pássaro cansado,/ O meu desejo incontentado”. Eu admirava sua cumplicidade, ela elogiava a minha entrega. Beatles, Janis, João Gilberto, Noel Rosa conviviam no espaço-tempo da nossa musicalidade. Buscávamos o transcendental para além dos manuais e doutrinas e toda conversa era um mistério que se me revelava dos Impérios distantes de Tombuctu, Gao ou Djenné. Geograficamente descobria que havia mais vida do que podia jorrar do pulso latente. Ela, uma vida em seus segredos.

(... A Princesa-pantera desfalecia de chorosa, até que suspirou pela última vez, ainda desejando um sopro de vida vindo do Amor. Dos seus negros e brilhantes olhos Zambi fez sementes e plantou a árvore da solidão dos homens, e ia todas as manhãs colher os frutos que brotavam como lágrimas de um choro renitente.)

E orávamos: ‘Deus dos Sem-Deuses, dá-nos o sorriso de cada dia para sempre alegrarmo-nos um no outro. Amém’.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Biografia em fragmentos I


"Culpava a infância pelos insucessos e fracassos da vida adulta. Queria ter como próprio Freud, não fosse o mero detalhe de ele ter morrido há mais de sete décadas. Não fizera a pré-escola, por isso complicava-se com direito e esquerdo, a lateralidade que a tia deveria ter ensinado aos que brincam de corre-cutia durante anos na escolinha colorida de borracha. Trancara-se no quarto desenhando, a la Exupèry, jibóias que engoliam elefantes, abelhas que pareciam anjos, anjos que eram pura garatuja; por isso não aprendera o futebol e sentia-se deslocado às quatro da tarde dos domingos, quando os amigos se reuniam para ver os intermináveis e sempre iguais campeonatos na televisão. Ou ia apenas pela cerveja e parafraseava os comentários berrados.
Lembrava-se muito mal da mangueira no quintal, grande e generosa em frutos, em sombra, em brinquedos que qualquer criança saberia inventar nela e com ela. Ressentia-se de não ter lido em criança "Meu pé de laranja lima". Talvez o ajudasse a estabelecer contato com a árvore. Só fora ao circo aos vinte e tantos anos. Chorou a felicidade de ver seus preconceitos virem abaixo quando o palhaço lhe arrancou um sorriso esfuziante. O aperto no peito acompanhava a tensão dos acrobatas. Voou sem sair do lugar.
A infância parecia-lhe uma manhã, dessas em que se acorda às dez e quando menos se percebe já é hora do almoço, iniciando a tarde. Não sabia ou não queria saber, porém, que o esquecimento é também uma forma de memória, e que, se quisesse, poderia visitá-la. Lembraria oportunamente do cheiro de mate e pão com menteiga, da barriga enconstada no chão quente da calçada de casa ao ver os carros passarem na rodovia, pensando alto: "Este é o meu!". Lembraria com certeza da história do Barba Azul, contada pela doce professora, ou do cheiro de gordura da massa de modelar feita em sala de aula, do tempo de pai e mãe inteiros, sem gritos. De repente ele descobriria que o esquecimento é na verdade seu álibi diante das fraquezas. Preferia, no entanto, acordar às dez para não ver o dia começar com a luz e a lucidez do sol."

Homenagem a Leminski

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

Homenagem a Guimarães Rosa

"Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa"