quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Biografia em fragmentos I


"Culpava a infância pelos insucessos e fracassos da vida adulta. Queria ter como próprio Freud, não fosse o mero detalhe de ele ter morrido há mais de sete décadas. Não fizera a pré-escola, por isso complicava-se com direito e esquerdo, a lateralidade que a tia deveria ter ensinado aos que brincam de corre-cutia durante anos na escolinha colorida de borracha. Trancara-se no quarto desenhando, a la Exupèry, jibóias que engoliam elefantes, abelhas que pareciam anjos, anjos que eram pura garatuja; por isso não aprendera o futebol e sentia-se deslocado às quatro da tarde dos domingos, quando os amigos se reuniam para ver os intermináveis e sempre iguais campeonatos na televisão. Ou ia apenas pela cerveja e parafraseava os comentários berrados.
Lembrava-se muito mal da mangueira no quintal, grande e generosa em frutos, em sombra, em brinquedos que qualquer criança saberia inventar nela e com ela. Ressentia-se de não ter lido em criança "Meu pé de laranja lima". Talvez o ajudasse a estabelecer contato com a árvore. Só fora ao circo aos vinte e tantos anos. Chorou a felicidade de ver seus preconceitos virem abaixo quando o palhaço lhe arrancou um sorriso esfuziante. O aperto no peito acompanhava a tensão dos acrobatas. Voou sem sair do lugar.
A infância parecia-lhe uma manhã, dessas em que se acorda às dez e quando menos se percebe já é hora do almoço, iniciando a tarde. Não sabia ou não queria saber, porém, que o esquecimento é também uma forma de memória, e que, se quisesse, poderia visitá-la. Lembraria oportunamente do cheiro de mate e pão com menteiga, da barriga enconstada no chão quente da calçada de casa ao ver os carros passarem na rodovia, pensando alto: "Este é o meu!". Lembraria com certeza da história do Barba Azul, contada pela doce professora, ou do cheiro de gordura da massa de modelar feita em sala de aula, do tempo de pai e mãe inteiros, sem gritos. De repente ele descobriria que o esquecimento é na verdade seu álibi diante das fraquezas. Preferia, no entanto, acordar às dez para não ver o dia começar com a luz e a lucidez do sol."

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