quarta-feira, 9 de junho de 2010

Paisagens enviesadas


Sol de meio-dia
Véspera de feriado
Estudantes em disparada

Um homem brinca
Com uma lagarta
Suas doze patas
Suas doces pancadas

Trabalho pesado
Suor e cimento
De cima do prédio
Se vê o bandido
Da bolsa ficou
O espelho quebrado
Batom, documento
Dobraram a esquina
Restou o hematoma
E um triste lamento

O homem devolve
A lagarta ferida
Planta acolhedora
A casa bendita

Fechouo sinal
Fecha-se o vidro
Balas, chicletes e panos de prato
Quem foi o culpado
Quem é o inimigo.

Na espuma do cuspe
Desfaz-se em segundos
Na lata amassada
Um último gole
Formiga de sorte
É teu latifúndio.

O grito desperta
A criança dormindo
O grito liberta
O homem caindo
Seu sangue empoçado.
Estava faminto.

O ponteiro paralisa
A fila do banco.
A filha do meio
Na escola primária
Num banco esquecida
Pergunta ao porteiro
Quem é que conhece
O sentido da vida.

Questão tão profunda
Esquece esse troço.
Brinca solitária
Joga amarelinha.

Uma dona-de-casa
Xícara sem asa
A calha entupida

O pai ocupado
Trabalho dobrado
Esquece a maleta

O filho caçula
A marca da agulha
Tomou seu veneno

Sol do meio-dia
Depois do feriado
Estudantes em disparada

Um homem procura
A sua lagarta
Remexe entre as folhas
Perversa ternura

Em cima do prédio
Ensaiando a queda
Um homem de terno
Em vão se pergunta:

Quem é dentre os homens
Ou sábios ou ricos
Quem é que conhece
O sentido da vida.

Leituras I


Sempre comento com meus alunos uma teoria, às vezes bem contestada, de que não existe realmente quem não goste de ler. Existem, sim, pessoas que não tiveram uma experiência efetiva com a leitura. Essas são pessoas que tiveram negado o seu direito de ser leitores e de vivenciar o que somente a dimensão da inventividade pode proporcionar.
Falo isso porque guardo ainda na lembrança duas das histórias que me iniciaram no caminho da leitura. A professora (típica professora Helena, com o mesmo tom meigo e carinhoso de todas as professoras do primário, saião até o joelho, óculos grandes e coque no alto da cabeça, fazendo com que qualquer possibilidade de desejo infantil fosse exterminada) nos levava uma vez por semana para a biblioteca e pedia que cada um de nós escolhessemos um livro, dentro os quais ela selecionaria um para ler para todos em “voz alta” e “mostrando as figuras”.
As várias estórias passeavam por entre nós, selecionávamos a cor, os desenhos, os sonhos que se figuravam por entre as páginas de formatos, tamanhos e linhas diferentes. Um dia escolhi a história do “Barba Azul”. O livro fala de um marinheiro (?) muito rico e poderoso que se casa com uma mocinha humilde e de bom coração. Depois do matrimônio, ele precisa viajar e lhe entrega um molho de chaves para que cuide da casa, alertando que, de todas as portas, uma, apenas uma jamais poderia ser aberta. Claro que, como boa mulher, ela desobedece e acaba se deparando com uma cena horrível – encontra os corpos das falecidas esposas que a antecederam. A chave acaba caindo no chão e fica manchada de sangue. Aliás, um sangue “mágico” que não se apaga. Ela limpa, esfrega, mas o sangue não sai denunciando a sua desobediência e curiosidade. Até que o Barba Azul chega da viagem e...
Não me lembro muito bem o fim moralizante que dera a minha professorinha para a história, a lição do texto, mas consigo lembrar-me perfeitamente das expressões que ela fazia querendo criar atmosfera de suspense, dobrando vagarosamente as páginas do livro para nos revelar a imagem, lendo pausadamente preocupando-se com os ouvintes pequeninos. Lembro-me da cara de espantados que ficávamos todos em volta da professora, do medo que fiquei do Barba Azul e da vontade de ajudar a pobre moça que, dentro em pouco, seria lançada ao quarto proibido para se juntar às ex-esposas desafortunadas. Lembro também nitidamente do desenho que fiz ao final da história. Sim, todos tínhamos que fazer uma ilustração sobre a história, que depois era colada como no mural criativo de bordas de borracha coloridas. Virginiano, com ascendente em gêmeos e lua em sagitário, desenhava com todo esmero na tentativa de colecionar elogios e estrelinhas. Pintava e cuidava do meu Barba Azul e de sua esposa infeliz.
De tudo o mais fantástico era como aquele momento de leitura se transfigurava num mundo lúdico e paralelo em que nós, meninos de alma entregue, conseguíamos interagir com os personagens, com o narrador, adentrávamos o espaço-tempo da narrativa e dialogávamos com a ficção. Éramos leitores exercendo o direito de sê-lo.
A outra história que me ficou foi a da “Casa Sonolenta”, em que a vovó dorme, o neto dorme, o cachorro e o gato dormem, a pulga dorme... Esse texto funcionava para mim como um mantra. Somente anos depois foi que descobri que no fim a casa também dorme. Nós sempre dormíamos no meio da contação e sonhávamos com vovós, netos, cães e gatos e pulgas bem acordados sedentos por estripulias imaginativas.
Quando penso nesses dias passados e na doce leitura da doce professora, recordo o início de uma caminhada. Ali, eu sentia que realidade e ficção eram duas faces de uma mesma existência, que com o passar da idade vão se distanciando, mas que nascem juntas fundadas no milagre da criação permanente do universo. Sinto agora que o meu discurso se misturou ao da professorinha carismática.
Por isso mesmo, olho com alegria a sobrinha de um ano e poucos meses que já sabe o que é ler, mesmo sem conhecer a palavra escrita. Ela lê o mundo, os gestos, as fagulhas de pirlimpimpim que estão o tempo todo suspensos no ar. Ela só confirma o que Paulo Freire nos dizia em suas tão belas e libertadoras palavras. Ela só dá continuidade a um mundo que há de permanecer: recheado de homens e mulheres quixotescos, que lutam contra os moinhos-gigantes que aparecem nos reinos tão, tão, tão distantes...