terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Semente de gente-quando-morre

E trazia consigo
Estampado no rosto
Algo entre a dor e a melancolia
Como se soubesse, se cresse
Que estar no mundo lhe era um favor concedido
A vida lhe negava o gosto
De ver o pleno da aurora
Andava como se aos outros incomodasse
E suportava como um Jó
Toda dor que lacerava

Sentia falta de quê?
De tudo que não sabia
Daquilo que não vivera
E sonhava inutilmente
Com um mundo coberto de sonhos
Com um mundo coberto de sempres
Com um mundo coberto de mundos
Com um mundo prenhe de tempos

Um palhaço sem graça e sem laço
Sem nariz colorido e sem passo
Ensaiado para roubar um sorriso

Tudo lhe era falta
Uma ausência que lhe preenchia
Como o tumor que lhe crescia no de-dentro
Roubando-lhe a vida, embora medíocre, lampejo de vida;
Faísca de gente, embora baço;
Esboço de homem, embora sem nome.

José, Severino, Augusto, Raimundo quem sabe
Nordestinamente desafiando as certezas,
Querendo ser forte,
Antes de tudo, forte
Carrega no ombro com toda destreza
A dor de ter dor no momento da morte...

Deitado em seu novo leito
A terra o abriga

Terra-casa, terra-amiga
lhe planta pra ver se agora amadura
ele que nunca saiu da semente
e o povo vai ver entre crente e descrente
um palhaço brotando do chão da amargura
um palhaço, um homem, um bicho-semente...

domingo, 5 de dezembro de 2010

Os inimigos são outros, muitos outros...


Confesso que fui assistir ao filme Tropa de Elite 2 meio a contragosto. Tinha muito receio do esquema simplificador que reduziu o primeiro filme a uma tola brincadeirinha de polícia e ladrão, com direito ao maniqueísmo mais raso que segregava os incorruptíveis soldados do BOPE de um lado, e os bandidos-que-deveriam-mesmo-morrer do outro. Assustou-me ver e ouvir pessoas aplaudindo os balaços que espalhavam massa encefálica a ponto de respingar no espectador. Lembro-me dos versos de Drummond:

“Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro”


É possível perceber um desejo de crítica no Primeiro Tropa de Elite (os “burgueses”, a passeata, o roteiro da droga etc). Essas questões, no entanto, são quase que apagadas ou neutralizadas diante de peripécias de segunda ordem que compõem o corpo do filme. Para minha felicidade, o segundo filme chega a quase anular o anterior. Sua construção, do roteiro à qualidade das imagens, traz intrínseco o desejo de perturbar, de derrocar estruturas e, sobretudo, de complexificar problemas tão graves quantos esses que assolam todo o país. Eis o meu maior elogio ao filme: a sua capacidade de querer aprofundar o debate, de demonstrar que o crime no Brasil é uma questão que envolve todos – desde o traficante ao policial, que algumas vezes se confundem, passando pelos governantes, e principalmente por conseguir fazê-lo de forma asfixiante, angustiada, pessimista.

Sim, porque acredito que o pessimismo é importante e mesmo necessário em alguns momentos da vida. É preciso se sentir encalacrado, sem saída, como o José drummondiano, para perseguir formas de enfrentamento. Acredito que Topa de Elite 2 vale a pena por isso. Precisamos discutir o crime sem os vícios deterministas que enxergam apenas desvios de caráter. Há que se questionar sobre quem ajuda a produzir diariamente os bandidos e marginais, categorias que não necessariamente dizem a mesma coisa; sobre o papel da polícia, sobre educação, qualidade de vida, emprego e salário dignos, pontos elementares para se pensar na integridade do sujeito, para que os discursos humanitários não sejam confundidos com mera verborragia para encobrir bandido. É necessário oferecer condições reais para que o homem seja íntegro. E isso só se faz enxergando os problemas de forma sistêmica, compreendendo que “é preciso toda uma tribo para salvar uma criança.” É uma pena que no Brasil a consciência sempre venha acompanhada do mal-estar. É isso!

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Ser preto, com todo direito de sê-lo

O debate acerca da questão racial no Brasil parece ter enfrentado uma certa neutralização nos últimos tempos. Isso porque uma negra protagonizou a novela das oito, nas prateleiras dos supermercados pode-se encontrar xampu para cabelos crespos ou hidratante para pele negra, o cabelo “black power” aparece num personagem de seriado juvenil; somado a isso no panorama mundial vê-se um presidente negro à frente da maior potência e a copa do mundo encontrou a África de Mandela. Tudo isso parece demonstrar o aluir das barreiras enfrentadas pelos negros e a queda da discriminação racial, um belíssimo porém frágil discurso. O fato de ser negro estar na moda não significa definitivamente que a questão está resolvida. Ocorre que o mundo da lógica capitalista transforma tudo (em velocidade exorbitante) em mercadoria, inclusive todas as lutas, por isso mesmo se vende uma idéia falaciosa de que a diversidade constituinte do povo brasileiro apaga as diferenças de cor, de credo e de grupo social. Na verdade, a coisa não mudou muito. Passado o furor inicial da implementação do sistema de cotas para negros, restou a fala resignada de um preconceito velado que ainda afirma que as cotas reforçam o preconceito e segregam ainda mais. Certo dia um aluno, durante o debate sobre o tema, discordou das cotas por afirmar que o livro que o branco lê é o mesmo que o do negro, por isso ambos teriam as mesmas chances. Preocupou-me grandemente tal juízo vindo de um aluno do ensino superior, sobretudo por demonstrar uma legítima ignorância histórica e por estar viciado pelos discursos de catedráticos que enxergam gráficos e planilhas e desconhecem o estigma, o rótulo, o peso insuportável das forças históricas. Por mais pop que possa parecer a moda afro, a indústria de chapinhas ainda lucra com o embranquecimento da sociedade, que uniformiza cabelos e ideologias de uma legião de pessoas cujo orgulho foi abalado pelos olhares enviesados dos que condenam o cabelo sarará. Para protagonizar a novela do horário nobre, a moça tem que estar ancorada ao casamento com um branco bem sucedido como que para legitimar o seu lugar. Mas eles continuam teimando em aparecer, vestidos de empregados ou no tão clichê personagem sambista, malandro, fanfarrão. Quero dizer com isso que levará ainda bastante tempo para que a diversidade seja respeitada e admitida socialmente em todas as esferas, e acrescento ainda que falta comunhão com a questão do negro. Sim, porque se fecho os olhos e me disponho a complexificar a ótica do mundo administrado, posso ouvir o som do chicote que estala e gira em “doidas espirais” regendo a dança do navio negreiro, posso ver as marcas do castigo e as mãos escalavradas que levaram no braço séculos de uma economia arcaica que sustentava a elite branca e privilegiada. Nessa comunhão todo brasileiro é negro e toda dor de um é a de todos. Por isso uso o cabelo solto e não me envergonho quando dizem que ele é duro, e não tenho medo de me chamar de negro, preto, crioulo. Axé!

domingo, 7 de novembro de 2010

Coisas de pai




Ao Seu Marcelo

“Eu te odeio! Quero que você morra!” Disse e bateu forte a porta atrás de si. Trancada e atirada à cama entre prantos e desejos de vingança, pensava em uma forma de punir seu pai. Queria ser mais livre, menos triste por ter quinze anos e não fazer “o que lhe desse na telha”. “Fala sério, odeio tudo isso!”. Seus quinze anos não permitiam que ela enxergasse todo um jogo de poderes, de medos e de perversos amores que regem a relação pai e filhos. Olhava em todos os quatro cantos do quarto à procura de algo que servisse à sua ira. Desejava que o pai morresse; melhor, que ela morresse, para que ele se sentisse culpado, constrangido, amargurado, com remorso e aos poucos definhasse e encontrasse enfim a morte, após uma lenta e dolorosa pena de dias, ou talvez semanas.
Lembrou-se das palavras duras, das proibições e os nãos iam e vinham ziguezagueando em sua mente, desenhando parábolas que viravam água e sal. Odiava o jeito com que lhe tratava, sentia como se suas mãos crescessem e lhe esmagassem, como se extermina um pernilongo irritante.
Seu olhar fixou o quadro de fotos dependurado na parede. Seus sorrisos com amigos, com o cachorro, com o pai. Num ímpeto levantou-se e retirou a foto ignorando os pequenos imãs coloridos voando pelo quarto. Picotou em exatos oito pedaços como se pudesse fazê-lo sentir o ódio do seu gesto. Abriu a porta da sua masmorra e lançou na sala os braços, abraços, caras e cenário distribuídos cada qual no espaço de um rasgo. Bateu a porta novamente. Chorou e dormiu desejando o fim do dia, da vida, do mundo. Acordou com os olhos inchados e abriu uma fresta. Viu a sala vazia e lentamente foi caminhando em direção à porta. Antes de dobrar o corredor pode ver em cima da mesa a foto colada num papel. Os quadradinhos juntavam-se de novo formando um mosaico da inteireza de outrora, abaixo os seguintes escritos: “Minha filha, dessa vez eu ainda consegui colar, mas chegará um dia em que não estarei mais presente para juntar nossas vidas. Espero que a nossa história não seja construída de remendos e pedaços mal colados. Meu amor de pai... sempre”.

Um feliz retorno...



Quando eu pensei em criar o blog, acreditei, como todos os coutros companheiros dessa empreitada (também compartilhada pela amiga Ellen), que conseguiria escrever e postar todos os dias, ou pelo menos toda semana. Mas como vocês podem notar, a frequência é de um texto por semestre. Não me orgulho disso, mas também tenho uma justificativa: nos últimos meses tenho vivido num limbo, escrevendo coisas específicas de uma pesquisa específica e isso tem me sugado. Dizem que os homens não engravidam, mas essa escritura representa uma gestação, e das complicadas!
Agora, estou tentando manter uma regularidade. Tenho tantas coisas na cabeça, tantos projetos, tantos textos planejados. Espero que se materializem!
Até breve!

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Paisagens enviesadas


Sol de meio-dia
Véspera de feriado
Estudantes em disparada

Um homem brinca
Com uma lagarta
Suas doze patas
Suas doces pancadas

Trabalho pesado
Suor e cimento
De cima do prédio
Se vê o bandido
Da bolsa ficou
O espelho quebrado
Batom, documento
Dobraram a esquina
Restou o hematoma
E um triste lamento

O homem devolve
A lagarta ferida
Planta acolhedora
A casa bendita

Fechouo sinal
Fecha-se o vidro
Balas, chicletes e panos de prato
Quem foi o culpado
Quem é o inimigo.

Na espuma do cuspe
Desfaz-se em segundos
Na lata amassada
Um último gole
Formiga de sorte
É teu latifúndio.

O grito desperta
A criança dormindo
O grito liberta
O homem caindo
Seu sangue empoçado.
Estava faminto.

O ponteiro paralisa
A fila do banco.
A filha do meio
Na escola primária
Num banco esquecida
Pergunta ao porteiro
Quem é que conhece
O sentido da vida.

Questão tão profunda
Esquece esse troço.
Brinca solitária
Joga amarelinha.

Uma dona-de-casa
Xícara sem asa
A calha entupida

O pai ocupado
Trabalho dobrado
Esquece a maleta

O filho caçula
A marca da agulha
Tomou seu veneno

Sol do meio-dia
Depois do feriado
Estudantes em disparada

Um homem procura
A sua lagarta
Remexe entre as folhas
Perversa ternura

Em cima do prédio
Ensaiando a queda
Um homem de terno
Em vão se pergunta:

Quem é dentre os homens
Ou sábios ou ricos
Quem é que conhece
O sentido da vida.

Leituras I


Sempre comento com meus alunos uma teoria, às vezes bem contestada, de que não existe realmente quem não goste de ler. Existem, sim, pessoas que não tiveram uma experiência efetiva com a leitura. Essas são pessoas que tiveram negado o seu direito de ser leitores e de vivenciar o que somente a dimensão da inventividade pode proporcionar.
Falo isso porque guardo ainda na lembrança duas das histórias que me iniciaram no caminho da leitura. A professora (típica professora Helena, com o mesmo tom meigo e carinhoso de todas as professoras do primário, saião até o joelho, óculos grandes e coque no alto da cabeça, fazendo com que qualquer possibilidade de desejo infantil fosse exterminada) nos levava uma vez por semana para a biblioteca e pedia que cada um de nós escolhessemos um livro, dentro os quais ela selecionaria um para ler para todos em “voz alta” e “mostrando as figuras”.
As várias estórias passeavam por entre nós, selecionávamos a cor, os desenhos, os sonhos que se figuravam por entre as páginas de formatos, tamanhos e linhas diferentes. Um dia escolhi a história do “Barba Azul”. O livro fala de um marinheiro (?) muito rico e poderoso que se casa com uma mocinha humilde e de bom coração. Depois do matrimônio, ele precisa viajar e lhe entrega um molho de chaves para que cuide da casa, alertando que, de todas as portas, uma, apenas uma jamais poderia ser aberta. Claro que, como boa mulher, ela desobedece e acaba se deparando com uma cena horrível – encontra os corpos das falecidas esposas que a antecederam. A chave acaba caindo no chão e fica manchada de sangue. Aliás, um sangue “mágico” que não se apaga. Ela limpa, esfrega, mas o sangue não sai denunciando a sua desobediência e curiosidade. Até que o Barba Azul chega da viagem e...
Não me lembro muito bem o fim moralizante que dera a minha professorinha para a história, a lição do texto, mas consigo lembrar-me perfeitamente das expressões que ela fazia querendo criar atmosfera de suspense, dobrando vagarosamente as páginas do livro para nos revelar a imagem, lendo pausadamente preocupando-se com os ouvintes pequeninos. Lembro-me da cara de espantados que ficávamos todos em volta da professora, do medo que fiquei do Barba Azul e da vontade de ajudar a pobre moça que, dentro em pouco, seria lançada ao quarto proibido para se juntar às ex-esposas desafortunadas. Lembro também nitidamente do desenho que fiz ao final da história. Sim, todos tínhamos que fazer uma ilustração sobre a história, que depois era colada como no mural criativo de bordas de borracha coloridas. Virginiano, com ascendente em gêmeos e lua em sagitário, desenhava com todo esmero na tentativa de colecionar elogios e estrelinhas. Pintava e cuidava do meu Barba Azul e de sua esposa infeliz.
De tudo o mais fantástico era como aquele momento de leitura se transfigurava num mundo lúdico e paralelo em que nós, meninos de alma entregue, conseguíamos interagir com os personagens, com o narrador, adentrávamos o espaço-tempo da narrativa e dialogávamos com a ficção. Éramos leitores exercendo o direito de sê-lo.
A outra história que me ficou foi a da “Casa Sonolenta”, em que a vovó dorme, o neto dorme, o cachorro e o gato dormem, a pulga dorme... Esse texto funcionava para mim como um mantra. Somente anos depois foi que descobri que no fim a casa também dorme. Nós sempre dormíamos no meio da contação e sonhávamos com vovós, netos, cães e gatos e pulgas bem acordados sedentos por estripulias imaginativas.
Quando penso nesses dias passados e na doce leitura da doce professora, recordo o início de uma caminhada. Ali, eu sentia que realidade e ficção eram duas faces de uma mesma existência, que com o passar da idade vão se distanciando, mas que nascem juntas fundadas no milagre da criação permanente do universo. Sinto agora que o meu discurso se misturou ao da professorinha carismática.
Por isso mesmo, olho com alegria a sobrinha de um ano e poucos meses que já sabe o que é ler, mesmo sem conhecer a palavra escrita. Ela lê o mundo, os gestos, as fagulhas de pirlimpimpim que estão o tempo todo suspensos no ar. Ela só confirma o que Paulo Freire nos dizia em suas tão belas e libertadoras palavras. Ela só dá continuidade a um mundo que há de permanecer: recheado de homens e mulheres quixotescos, que lutam contra os moinhos-gigantes que aparecem nos reinos tão, tão, tão distantes...

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Crônica de triste fim



A Alcides Lins

As lágrimas ainda rolavam de seu rosto. Em pouco tempo cessariam dando vez a uma secura absoluta, pontiaguda, como a dor mais profunda que se pode conceber – dor de mãe que perde o filho. Um filho Imperador, entre gigantes e moinhos, lutando contra a força impiedosa da miséria, da desigualdade de oportunidades que divide a sociedade. Morto a balas em frente à casa humilde da catadora de lixo, sua mãe, que fechando os olhos relembrava a felicidade de ver o filho ser primeiro. O primeiro nome da lista, ignorando os determinismos de cor, de classe, de endereço, desafiando olhares de repúdio e desconfiança, dos que se sentem ameaçados pela pobreza, incômoda como um soco no estômago.
Sentada em frente à janela, ela questiona o tempo, como se tentasse imaginar o que aconteceria se ele tivesse chegado em casa cinco minutos antes ou depois. Desejou que ele tivesse perdido o ônibus, ou qualquer sorte de empecilhos lhe tivesse atrasado a chegada. Impossível saber – o tempo devora. Sentada à janela, ela espera e espera pelo filho que não virá. Que se foi sem ser pródigo, sem renegar a família, as terras, a fortuna, que sequer teve tempo de aproveitar a vida, pois “estatelado ao relento/perdeu a pressa que tinha” de viver.
Impedido de escrever o epílogo de sua história, deixou capítulos de grandeza quixotesca, escritos à boa pena, consciente da luta digna do dia. Em casa, a mãe, buarquianamente, arruma o quarto do filho que já morreu, vivendo doridamente o revés do parto. As irmãs desviam do olhar da mãe, mas comungam da dor imensa, dobrando a camiseta ainda jogada sobre o cesto, recolhendo os livros marcados de cujas anotações avulta o espírito sonhador do imperador. Os vizinhos fecham as janelas e escrevem cartazes pedindo justiça. Pela internet, milhares de pessoas acompanham sua história de triste fim, em silêncio profundo como quem tenta dar significado a tamanha barbaria.
Numa casa de periferia, à meia-noite, alguém escreve para não chorar a história “deste filho de meu pai”, reconhecendo nela a sua própria história, de desfecho diferente, por enquanto e quem sabe por quanto tempo. Meu minuto de silêncio.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O elefante c'est moi



Busco quem compreenda meus fragmentos
Os pedaços de mim espalhados pelo vento
Como bolhas de sabão em meio a um vendaval
Porque sou fragmento
E vivo tentando costurar os pedaços de vida
E saio mambembe com as linhas penduradas
Denunciando o coser amador

Cansei de tentar ser completo
E hoje duvido da integridade
Por isso busco quem me queira aos pedaços
Recolhendo-me e montando o que pode ser montado
O que não foi perdido
Ou, por querer, esquecido.

A canção "particular" de Maria Gadú


Tive a sorte de conhecer a música de Maria Gadú, artista bem jovem, mas com um talento antigo, tenho certeza. Trata-se daqueles poucos álbuns que se tem vontade conhecer inteiro numa só tarde, porque se tem certeza de que embalará outras tantas. É isso: o disco de Maria Gadú me lembra uma tarde de chuva, daquelas descomprometidas em que se fica debaixo de um bom cobertor admirando a beleza do tempo frio e do calor aconchegante de um agasalho.
Duas canções, em especial, me encantaram. A primeira - “Dona Cila”, é uma canção escrita em homenagem à sua avó, a quem o álbum é dedicado. A letra é permeada por um sentimento a um só tempo doce e amargo. A doçura do amor que sustenta, o amargo da despedida. Há melancolia na construção e melancolia é um sentimento difícil. Fala de uma dor danada, a do apego que “não quer ir embora” junto com quem se vai. E termina belamente com uma espécie de oração:

Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um banto a ela, que ela me benze aonde eu for

A outra é um samba-canção a não dever quase nada a outros grandes nomes do samba brasileiro. Falo de “Altar particular”, canção de uma cadência a la Noel Rosa e também de letra sofrivelmente bela. Com versos como “No breu de hoje eu sinto que/ O tempo da cura tornou a tristeza normal”, o eu-lírico, que experimenta a via crucis de uma dolorosa relação amorosa, espera, no sentido mais perseverante da palavra, a concretude do amor, uma fagulha de plenitude alcançada pelo coração. Finaliza, entretanto, com a espera:

Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor

Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou contudo a flutuar no rio
esperando a resposta ao que chamo de amor

O disco que traz ainda regravações como “A História de Lily Braun” de Chico Buarque e o clássico “Ne me quite pas” (em versão surpreendente), agrada pela beleza e pelo cuidado. Se “música é perfume”, o disco de Maria Gadú há de espalhar aromas inesquecíveis e, com sorte, hão de impregnar...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Coisas de mãe I

Na mão direita aberta cinco moedas. Insuficiente para o refrigerante. Sem problemas: comeria somente o cachorro-quente. A manhã pesada da aula lhe deu muita fome. Ainda teria toda a tarde pela frente. Sabia que estudar era o caminho, sua mãe sempre lhe dizia.
Do outro lado da cidade, a mãe recolhida na copa, terminava de esquentar a sua marmita. Lembrou-se por um instante do filho na faculdade que talvez não tivesse dinheiro para comer. Deu a primeira colherada. Em sua cabeça, o filho com fome. Mastigava com dificuldade. O filho do outro lado da cidade com fome.
A comida começou a inchar em sua boca, não descia pela garganta. Sentiu dor e tristeza profunda, cuspiu e pôs-se a chorar orando pelo filho.

"A solidão de ser só dois"



Os corpos nus espalhados na cama.
Não tinham sequer recobrado as forças após o intenso gozo que ainda enchia seus corpos de uma avalanche de choques e espasmos.
De repente, ele se virou de lado, alcançou os cigarros e o isqueiro em cima de um criado mudo e acendeu.
A fumaça criou uma espécie de cortina entre os dois, quando ele começou a falar:
“Já pensou que loucura: se eu morresse agora eu nunca mais sentiria prazer. Não é mesmo louco!?”
A cortina se adensou. A fumaça branca agora mais espessa parecia paralisada no ar entre os dois.
“Se você morresse agora, disse ela, eu nunca mais sentiria prazer.”
A frase saiu desconcertada, entre titubeante e emocionada por ter proferido o que poderia ser interpretado como uma declaração de amor. E talvez o fosse. Era.
Nunca antes fora capaz de dizer isso a ninguém, tanto por incerteza quanto pela falta de oportunidades. Colecionou quatro ou cinco romances malfadados cujas declarações nem...
Disse e desviou o olhar. Queria parecer indiferente, distante, soou envergonhado, tímido, real.
Ele se levantou calmamente, pôs no aparelho um disco de Noel:
“Você precisa pensar um pouco mais em si mesma”.
“Eu não te entendo.”
“Talvez nunca entenda mesmo, mas que importa? você precisa é se entender!”
Disse isso enquanto se vestia.
Nessa hora, ela se virou de lado, cobriu-se com o lençol amarrotado e pela primeira vez envergonhou-se de estar nua.