segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

África em mim


Foi assim:

Eu a via todas as manhãs sem que ela me visse. Não fisicamente, é claro, pois estávamos quase sempre lado-a-lado. Ela, uma Rainha Africana dos reinos de Songhai, Mali, Gana, tanto faz, superior em sua realeza, e eu ensaiando uma postura tímida de súdito, esgueirando-me por entre colunas e pilastras anímicas para entrevê-la sempre ao longe. E via. Via do Saara por mim criado, num Sahel refugiado, mas via.

(Uma pausa para Chico: “Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão...”)

Via. Primeiro monalisticamente a insistir no seu quase-rir, depois de tempos sorria já meio de lado, como que tímida ou discreta, um tanto misteriosa, como é próprio de uma figura Soberana. Ainda assim o sorriso fulgurava e ganhava espaço uma gargalhada quase sisuda e imponente.

Sentado ao seu lado, refugiava-me em intermináveis leituras para evitar a gagueira e o desconserto que me acometiam quando nos falávamos. Adolescentemente sentia espinhas imaginárias crescerem por todo o meu rosto denunciando meu deslocamento. Ensaiei duas ou três vezes. Resolvia arriscar e lhe falei... da vida, das dores, das fraquezas, do medo da depressão.

(Inventei uma história — o enredo ainda me foge um pouco, mas os fios vão sendo trançados aos poucos, antes que o vento do esquecimento me leve esta fábula tristonha: ‘Era uma vez uma Princesa do Reino de Ndongo, com colares de Marfim, vestida de noite de lua cheia, sorriso de brilhantes...)

É assim:

Eu começava a falar, ela completava. Parecia me roubar as palavras à boca. Tentava adivinhar o que ela adivinharia dos meus gostos, das minhas músicas, das minhas comidas, das manias na próxima frase. Esbocei um gesto, soou prematuro. Recuei sem tocar-lhe a mão, mas sentia sua textura, guardava o possível aroma de pitanga madura em meu bolso.

(...vivia solitária e pedia aos Orixás o presente de amar. Zambi ouvia suas preces, bebia suas lágrimas e lhe negava um amor terreno por ciúme da bela princesa. Queria-a só para si...)

Assim será :?

Dificultosamente rompi as barreiras e os engasgos, toquei-a. O suficiente para buscar o futuro: Eu lhe recitava as poesias pela manhã, ela paciente ouvia, embora não gostasse: “Tu que me deste o teu carinho/ que me deste o teu cuidado,/ acolhe ao peito, como o ninho acolhe o pássaro cansado,/ O meu desejo incontentado”. Eu admirava sua cumplicidade, ela elogiava a minha entrega. Beatles, Janis, João Gilberto, Noel Rosa conviviam no espaço-tempo da nossa musicalidade. Buscávamos o transcendental para além dos manuais e doutrinas e toda conversa era um mistério que se me revelava dos Impérios distantes de Tombuctu, Gao ou Djenné. Geograficamente descobria que havia mais vida do que podia jorrar do pulso latente. Ela, uma vida em seus segredos.

(... A Princesa-pantera desfalecia de chorosa, até que suspirou pela última vez, ainda desejando um sopro de vida vindo do Amor. Dos seus negros e brilhantes olhos Zambi fez sementes e plantou a árvore da solidão dos homens, e ia todas as manhãs colher os frutos que brotavam como lágrimas de um choro renitente.)

E orávamos: ‘Deus dos Sem-Deuses, dá-nos o sorriso de cada dia para sempre alegrarmo-nos um no outro. Amém’.

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