domingo, 21 de fevereiro de 2010

Crônica de triste fim



A Alcides Lins

As lágrimas ainda rolavam de seu rosto. Em pouco tempo cessariam dando vez a uma secura absoluta, pontiaguda, como a dor mais profunda que se pode conceber – dor de mãe que perde o filho. Um filho Imperador, entre gigantes e moinhos, lutando contra a força impiedosa da miséria, da desigualdade de oportunidades que divide a sociedade. Morto a balas em frente à casa humilde da catadora de lixo, sua mãe, que fechando os olhos relembrava a felicidade de ver o filho ser primeiro. O primeiro nome da lista, ignorando os determinismos de cor, de classe, de endereço, desafiando olhares de repúdio e desconfiança, dos que se sentem ameaçados pela pobreza, incômoda como um soco no estômago.
Sentada em frente à janela, ela questiona o tempo, como se tentasse imaginar o que aconteceria se ele tivesse chegado em casa cinco minutos antes ou depois. Desejou que ele tivesse perdido o ônibus, ou qualquer sorte de empecilhos lhe tivesse atrasado a chegada. Impossível saber – o tempo devora. Sentada à janela, ela espera e espera pelo filho que não virá. Que se foi sem ser pródigo, sem renegar a família, as terras, a fortuna, que sequer teve tempo de aproveitar a vida, pois “estatelado ao relento/perdeu a pressa que tinha” de viver.
Impedido de escrever o epílogo de sua história, deixou capítulos de grandeza quixotesca, escritos à boa pena, consciente da luta digna do dia. Em casa, a mãe, buarquianamente, arruma o quarto do filho que já morreu, vivendo doridamente o revés do parto. As irmãs desviam do olhar da mãe, mas comungam da dor imensa, dobrando a camiseta ainda jogada sobre o cesto, recolhendo os livros marcados de cujas anotações avulta o espírito sonhador do imperador. Os vizinhos fecham as janelas e escrevem cartazes pedindo justiça. Pela internet, milhares de pessoas acompanham sua história de triste fim, em silêncio profundo como quem tenta dar significado a tamanha barbaria.
Numa casa de periferia, à meia-noite, alguém escreve para não chorar a história “deste filho de meu pai”, reconhecendo nela a sua própria história, de desfecho diferente, por enquanto e quem sabe por quanto tempo. Meu minuto de silêncio.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O elefante c'est moi



Busco quem compreenda meus fragmentos
Os pedaços de mim espalhados pelo vento
Como bolhas de sabão em meio a um vendaval
Porque sou fragmento
E vivo tentando costurar os pedaços de vida
E saio mambembe com as linhas penduradas
Denunciando o coser amador

Cansei de tentar ser completo
E hoje duvido da integridade
Por isso busco quem me queira aos pedaços
Recolhendo-me e montando o que pode ser montado
O que não foi perdido
Ou, por querer, esquecido.

A canção "particular" de Maria Gadú


Tive a sorte de conhecer a música de Maria Gadú, artista bem jovem, mas com um talento antigo, tenho certeza. Trata-se daqueles poucos álbuns que se tem vontade conhecer inteiro numa só tarde, porque se tem certeza de que embalará outras tantas. É isso: o disco de Maria Gadú me lembra uma tarde de chuva, daquelas descomprometidas em que se fica debaixo de um bom cobertor admirando a beleza do tempo frio e do calor aconchegante de um agasalho.
Duas canções, em especial, me encantaram. A primeira - “Dona Cila”, é uma canção escrita em homenagem à sua avó, a quem o álbum é dedicado. A letra é permeada por um sentimento a um só tempo doce e amargo. A doçura do amor que sustenta, o amargo da despedida. Há melancolia na construção e melancolia é um sentimento difícil. Fala de uma dor danada, a do apego que “não quer ir embora” junto com quem se vai. E termina belamente com uma espécie de oração:

Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um banto a ela, que ela me benze aonde eu for

A outra é um samba-canção a não dever quase nada a outros grandes nomes do samba brasileiro. Falo de “Altar particular”, canção de uma cadência a la Noel Rosa e também de letra sofrivelmente bela. Com versos como “No breu de hoje eu sinto que/ O tempo da cura tornou a tristeza normal”, o eu-lírico, que experimenta a via crucis de uma dolorosa relação amorosa, espera, no sentido mais perseverante da palavra, a concretude do amor, uma fagulha de plenitude alcançada pelo coração. Finaliza, entretanto, com a espera:

Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor

Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou contudo a flutuar no rio
esperando a resposta ao que chamo de amor

O disco que traz ainda regravações como “A História de Lily Braun” de Chico Buarque e o clássico “Ne me quite pas” (em versão surpreendente), agrada pela beleza e pelo cuidado. Se “música é perfume”, o disco de Maria Gadú há de espalhar aromas inesquecíveis e, com sorte, hão de impregnar...