
Tive a sorte de conhecer a música de Maria Gadú, artista bem jovem, mas com um talento antigo, tenho certeza. Trata-se daqueles poucos álbuns que se tem vontade conhecer inteiro numa só tarde, porque se tem certeza de que embalará outras tantas. É isso: o disco de Maria Gadú me lembra uma tarde de chuva, daquelas descomprometidas em que se fica debaixo de um bom cobertor admirando a beleza do tempo frio e do calor aconchegante de um agasalho.
Duas canções, em especial, me encantaram. A primeira - “Dona Cila”, é uma canção escrita em homenagem à sua avó, a quem o álbum é dedicado. A letra é permeada por um sentimento a um só tempo doce e amargo. A doçura do amor que sustenta, o amargo da despedida. Há melancolia na construção e melancolia é um sentimento difícil. Fala de uma dor danada, a do apego que “não quer ir embora” junto com quem se vai. E termina belamente com uma espécie de oração:
Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um banto a ela, que ela me benze aonde eu for
A outra é um samba-canção a não dever quase nada a outros grandes nomes do samba brasileiro. Falo de “Altar particular”, canção de uma cadência a la Noel Rosa e também de letra sofrivelmente bela. Com versos como “No breu de hoje eu sinto que/ O tempo da cura tornou a tristeza normal”, o eu-lírico, que experimenta a via crucis de uma dolorosa relação amorosa, espera, no sentido mais perseverante da palavra, a concretude do amor, uma fagulha de plenitude alcançada pelo coração. Finaliza, entretanto, com a espera:
Teu cais deve ficar em algum lugar assim
Tão longe quanto eu possa ver de mim
Onde ancoraste teu veleiro em flor
Sem mais, a vida vai passando no vazio
Estou contudo a flutuar no rio
esperando a resposta ao que chamo de amor
O disco que traz ainda regravações como “A História de Lily Braun” de Chico Buarque e o clássico “Ne me quite pas” (em versão surpreendente), agrada pela beleza e pelo cuidado. Se “música é perfume”, o disco de Maria Gadú há de espalhar aromas inesquecíveis e, com sorte, hão de impregnar...